domingo, dezembro 19, 2010

Gelada emoção

O poeta desconhecido bem dizia: ‘Quando de artérias desentupidas jorra a vermelhidão absurda, / Só se pode rezar, / O caminho que ela segue/ Não é mais o rumo com a presumida autoria de Deus. / Ela simplesmente jorra/ De acordo com as batidas do coração/ Que morre.’

Ainda que a lâmina fosse pouco afiada, tzáz, e um horizontal corte na jugular. Horror, tragédia? Calma, era só um manequim, um aluno desinteressado demonstrando qualquer coisa numa aula de Cirurgia Geral da faculdade.

O pedaço de matéria plástica que imitava os sofrimentos e dores humanos não abriu os olhos ou gemeu de dor. Nada de vida ali. No máximo, houve um levíssimo tremor, esse vindo da mão que manuseava sem muito cuidado o bisturi. Tesoura Metzenbaum e feito um furo profundo no peito, sem alcançar coração algum.

Um primitivo instinto, vindo das profundezas do estômago do quase doutor, confundiu a mistura de espuma e látex cor da pele com carne e disse: Alimente-se. Horas e horas de jejum que se cessariam até, quase de modo canibal, com um boneco desanimado, futuramente um paciente. Até onde todo esse cansaço o levaria? Plantões e plantões em tantas noites (e pó e pó em tantas outras horas) que parecia plausível e adequada uma discussão dessas com o próprio cérebro.

O poeta, agora dentro da cabeça dele, prosseguia em seus devaneios: ‘Continue, avance, ganhe experiência, que no futuro esse diploma e essa magreza te valerão alguma coisa, seja um emprego que você não quer, seja uma aliança larga demais no dedo, seja uma vida vazia, seja uma pessoa vazia. Que valha menos do que plástico e sofra ainda mais caladamente que esse boneco’.

quinta-feira, novembro 25, 2010

O atual é banal

Falar mal, falar bem, falar qualquer coisa, falar em qualquer lugar; virou moda falar: dar a sua opinião ou a cara para bater, compartilhar uma ideia ou condenar outra sem piedade. Minutos e minutos que nós, jovens na flor da imaturidade, passamos ouvindo e mandando calar a boca, discutindo e julgando, teclando freneticamente e recebendo como público outros tantos que se apóiam em conceitos compartilhados mais de um milhão de vezes na base do CtrL+C e Ctrl+V. Muito tempo que nós fielmente dedicamos ao ato de criticar, de nos expressar com agressividade ou carinho, de nos fazer presentes neste mundo em que somos contados como cabeças de gado: a Internet.

Transitando sem dar seta entre o Orkut, o Twitter, o Formspring e o You Tube, para citar os sites mais utilizados pelos adolescentes, a juventude atual compartilha com a rapidez de um clique (ou a de um piscar de olhos) qualquer tipo de foto ou notícia, absorvendo uma manchete ou uma legenda e mandando a mensagem aos dedos - enviar, disseminar, espalhar – antes que ela realmente chegue ao cérebro – interpretar, relacionar, refletir.

Somos uma juventude financiada com liberdade pelos nossos pais, que sem checar nosso destino, nos dão como instrumentos de viagem computadores com internet veloz, celulares de última geração, tocadores de música e câmeras fotográficas digitais. E nessa onda de produzir o próprio material, seja ele em texto, vídeo ou foto, a disseminação é intensa, impensada, impactante, uma bomba relógio que passa de mão em mão, frequentemente sem pé nem cabeça.

Assim traçamos nosso falso caminho, pensando que pela vida toda conseguiremos ajustar brilho, contraste e temperatura de cor como na tela do computador, deletar os males da vida clicando no X do canto direito superior, até que a bateria acabe...

Normal, hoje, é aquele desinformado, definhando na ignorância cotidiana. As polêmicas políticas, econômicas e sociais do nosso País são trocadas pela noticia ordinária; decisões sérias que mudarão o planeta perdem a audiência para a foto e a declaração banal do artista cegamente venerado. Invertemos a escala de importância e ficamos por fora do mundo real, ao qual chegaremos inevitavelmente daqui a alguns anos, quando os atuais ídolos tiverem barba na cara e vergonha por escravizar uma geração à custa do próprio lucro.

quarta-feira, novembro 17, 2010

Quando o emocional se torna físico

Fila longa no hospital. Chora alto o bebê nos braços da negra magra. Geme o homem que aperta um pano de enxugar pratos contra a perna que pinga vermelho. Grita sem parar a menina cuja mãe tenta amparar, pressionando um saco de gelo na mãozinha que parece estar quebrada. E mais dúzias de pacientes, de pé ou sentados, dirigiam o olhar sem rumo ao relógio tiquetaqueando baixinho. A sala de espera do pronto-socorro tinha todas as janelas abertas, entretanto o ar abafado não distinguia mais dentro e fora, fazendo todos suarem.

A recepcionista passa as mãos pela testa que pinga fadiga e exaustão. Seu estômago ronca tão alto que se todos fizessem silêncio sua fome se tornaria audível andares acima.

Chega perto uma jovem muito bela, decidida, porém de saúde frágil; seu estado é gravíssimo, sente que morrerá a qualquer minuto. Com as mãos no peito, um pano está amarrado forte passando por baixo de seus braços. A jovem se apóia na mesa de atendimento, suspira e pede por um momento a atenção da recepcionista, perdida na bagunça. Quer saber aonde ir, a quem choramingar, se há alguém nesse edifício, nesse mundo, que possa ouvir suas lamúrias e segurar sua mão quando doer. A funcionária do hospital bem que tenta, mas não entende o que a jovem diz; o barulho é ensurdecedor, alguém decidiu ligar a televisão e colocar no volume máximo o replay do desfile de escolas de samba daquele ano. Por linguagem labial, elas se entendem: ‘Aponte o seu problema’, a recepcionista fala.

A jovem com cuidado desata o nó. Duas metades de um coração em sangue pendiam pela blusa, daí o lencinho para segurá-lo dentro do peito mal-tratado.

sábado, novembro 13, 2010

Não quis mais esperar

Está de volta a dama dos livros, da escrita, dos blogs em geral!

Arrogância seria se eu me considerasse essa tal dama, já que as peculiares educação e inocência de uma respeitável senhorita eu perdi numa última discussão tanto mais inflamada com um amigo meu...

É no fundo só mais uma brincadeira anunciar que enfim retornou, após um hiato de quatro meses, a lady das ladys em matéria de publicação de textos. Deixo aqui registrado só o meu orgulho por ter este blog, e o quanto é grande para mim ter coragem de publicar cada texto que publico, ciente de que espetaculares eles não são. Encho o peito ao dizer que me esforço e que adoro escrever, e que cuido, ao máximo da minha disponibilidade, com carinho deste singelo sítio. Viva, e que o próximo texto não seja essa larga enrolação...

quinta-feira, julho 01, 2010

R & J de novo

-Ora essa, arruinaram-se suas falas?

‘Atrevida’, Romeu pensou.

Julieta estava de pé a sua frente, um bosque escuro e úmido em volta. Noite fria e escura. Ele estava porcamente caído na grama, abraçado com paixão boêmia a uma caixa de absinto. Aterrorizado! De onde surgira aquele poder, aquela força, aquele sorriso que ele nunca imaginara em mulher nenhuma? Indescritível o quanto ele se sentia atraído a ela.

Ele observava os dedos finos, as unhas pontiagudas. Ela possuía cinco pequenos punhais em cada mão! Correndo pelo tecido nobre, um vestido puro e agora imundo da caminhada pela floresta e de suas intenções.

Ela tirou da primeira casa o primeiro botão.

-Serei eu quem começará nosso duelo de mentiras?

Segundo botão;

-Romeu, seu tolo, meu tolo.

Os botões, para infelicidade dele, iam do pescoço lindo até a cintura fina. Com apenas a luz do luar aos dois, ele pensava em dez, quinze gordos botões prendendo aquela inocência.

-Finja mais um pouco que suas promessas sussurradas ainda me manterão presa, daquele jeito fácil de antes.

Terceiro botão;

-Quem sabe um copo dessa sujeira que você tanto ama o faça mais esperto, uma vez na vida.

Quarto botão. Ela riu;

-Você sempre guardou essas garrafas com mais vontade do que o meu coração, e ele ainda sangrava quando eu o entreguei a você...

Quinto botão;

-Faça-me assistir a mais um milhão de pores-do-sol, me engane com seus olhares, e não me deixe nunca fugir desse sonho.

Sexto botão. A pele de seu colo, branco, já aparecia claramente.

-Esconda de novo e de todos que as suas vontades são de mim. Suspire o tempo todo, minta a cada lufada de ar que consumir.

Sétimo botão. Este foi o mais difícil para ela.

-Seja enfim o homem que você diz que eu mereço...

Um puxão acabou com os remanescentes. Agora Julieta também parecia sem escolha, intensamente próxima a ele. Sacudiu os braços. Vestido ao chão.

-... para que eu possa ser enfim a mulher que você não merece.

sábado, junho 19, 2010

O que nem uma píton consegue devorar

Eu subi as escadas devagar. Nem acreditei! Fugi do tédio, da televisão que não me oferece absolutamente nada, do mal que o computador me faz quando me aprisiona em sua tela que pisca, do quão incontrolavelmente pirada eu me sinto com tudo isso. E sorrateiramente corri pelos degraus. Infantil, com medo dos monstros, até não poder mais!

Ainda bem que ninguém questionou uma vírgula e o quarto já estava escuro. Foi só tirar os sapatos e esperar, ainda sentada sobre o colchão, por algum sinal divino que pudesse me tirar da insanidade já mencionada. E porque eu queria me livrar tanto dela, é possível perceber quando eu finjo que me deito em paz.

O medinho ao me esconder da realidade na trincheira de cobertores (e o frio dos lençóis, anda mais perceptível quando você já deitou em lençóis quentinhos) não surpreendeu, e como espero desses temores me recuperar, para um dia casar sem loucuras aparentes que seriam motivos claros para um divórcio, não verifiquei assustada embaixo da cama para me garantir contra qualquer píton birmanesa. Até pensei: e se houvesse uma arrastando-se gorda perto de mim, seria ela o ser (ou a causadora da sensação) que me libertaria desse aparente delírio?

Eu teria que me unir a alguma seita maluca? Simular uma ficção em que o pensamento não fosse arma nem escudo? Largar dessa de querer descobrir as verdades, as mentiras e o que ninguém imagina que ainda pode ser descoberto? Ou algo que fosse de fora pra dentro; encher de símbolos a pele toda que já carrega pintas e cicatrizes em abundância? Filar um comprimido dos remédios da prateleira tarja preta de papai? O que me faria ser feliz sem amarras, em liberdade, não o contrário? VOCÊ?

terça-feira, junho 15, 2010

Capítulo 2

Nunca o terno tinha estado tão apertado e cheirando tanto a cigarro. Os óculos escuros modelo aviador cobriam os olhos vermelhos e as olheiras fundas; o dia estava com um espesso nevoeiro, e ele não enxergava um passo a sua frente, muito menos o céu acima. O sapato esquerdo estava desamarrado, mas ele o deixava assim, tendo medo de abaixar-se e acabar jogando-se no chão, sem forças nem vontade para levantar.

Estava no norte da Inglaterra, na minúscula cidade natal de Glória (não havia mais sentido em chamá-la de Sra. Charles), sua companheira há quase dez anos. Amigos, parentes, conhecidos, todos presentes. Imensamente tristes, mas não sentiam a aflição do Sr. Charles. Algumas mulheres ainda derramavam lágrimas escuras de maquiagem, enxugadas com lenços cinza de seda. Os homens davam apertos de mão esmagadores e tapinhas nas costas. Não diziam nada.

Zelar demais por Glória, abafá-la em suas vontades e desejos, piorou o alcoolismo que ela herdara do pai. Após a última bebedeira, uma das mais agressivas, ela bateu o carro contra um poste em Berlim. Com tanta velocidade que a lataria fora reduzida a uma escultura mórbida. Era agora uma pobre mulher envolvida em lírios num caixão sufocante.

Mas o pobre jovem bilionário teve que agüentar o triste velório de sua amada mulher, sem poder dizer o que sentia para ninguém.

quinta-feira, junho 03, 2010

Controlável formosura

“Seu cabelo continha todos os raios de sol do mundo: brilhava a ponto de ofuscar os olhos de quem o contemplava. Ia até o meio de suas costas em ondas delicadas. Balançava suavemente com o seu andar elegante, e mesmo quando estava parada e pensativa, uma leve brisa a acompanhava e misturava seus fios de ouro.

“Os olhos tinham todas as cores do arco-íris, e até mais algumas. Eram hipnotizadores, grandes e brilhantes. Mil borboletas batiam suas asas dentro dele, num vôo que cintilava. Quanto mais feliz ela se sentia, mais bonito seu olhar ficava: era capaz de aquecer corações já antigos demais.


“Sua boca era belíssima: os lábios carnudos e vermelhos como uma maçã abriam-se sempre num sorriso encantador e faziam explodir emoções quando beijavam os de seu amado.”


-Não, tire essa parte do beijo. – ela tragou seu cigarro.

“Sua boca era belíssima: os lábios carnudos e vermelhos como uma maçã abriam-se sempre num sorriso encantador e escondiam dentes perolados e felizes como os de uma criança.”

-Hmpf. Isso aí. – soltou a fumaça pelo nariz.

“Os pés que tinham andado tanto e descoberto tantos caminhos eram macios, pequeninos. As mãos gostavam de calor humano e proximidade: eram hábeis e acolhedoras; igualmente pequeninas.

“O corpo esbelto, de pele suave e quente, movimentava-se sempre no ritmo que ninguém determinava. Ela sorria e fechava os olhos para aproveitar melhor a música. Sua vivacidade traduzia-se quando ela dançava: de todas as suas habilidades, era com aquela que mais se sentia plena e dona de si.

“Suas emoções eram sempre bem definidas: muito precisas e extremamente envolventes. A força e energia que tinha vinha do amor que nutria pela vida sempre generosa.

“Ela vivia pois o novo a cada dia era sua razão de existência: a felicidade de ter um passado, um presente, e um futuro, um ontem, um hoje, e um amanhã, mal cabia em seu peito quando ela se descobria viva a cada segundo.
“Seu conjunto era especial, incomparável. Ela, sendo ela, era a mulher mais bela deste planeta.

“Até sua respiração era linda: meu Deus, como pude esquecer de dizer isso? Devo ter deixado de falar vários outros detalhes também. Há tanto para falar... Um infinito de perfeições...”

Paula bateu o cigarro no cinzeiro de pedra. À sua frente estava um jovem sentado numa cadeira preta junto a uma mesa onde havia uma negra máquina de escrever. Seu cabelo era ralo a ponto de poder se ver o couro cabeludo rosa. Ele era magricelo e curvado. Esse garoto olhava as teclas gastas e passava os dedos com unhas longas por elas suavemente, como se acariciasse o rosto de uma moça, coisa que nunca havia feito. Seus pensamentos não estavam focados em nada: ele era uma pessoa ausente, não importava a situação.

Ela estava impaciente como em todas as manhãs. Batia insistentemente o salto fino do sapato com estampa de onça no chão, espalhando ecos pela sala. O cigarro que fumava não tinha nicotina alguma, porém ainda lhe dava o mesmo prazer. Alguns achavam que aquela medida saudável do governo não adiantava nada, pois ainda era possível encontrar cigarros antigos e não-mofados à venda, a algumas esquinas dali. Como funcionária do governo, ela seguia a maioria das regras, pelo menos enquanto houvesse alguém que pudesse a flagar.

Um segurança entrou na sala e tirou com delicadeza o papel com letras ainda molhadas da máquina. Ela conhecia-o bem, mas sempre o olhava cuidadosamente de cima a baixo. Desta vez ele portava um fuzil e tinha munições presas às panturrilhas, onde normalmente se colocaria uma faca de caça. Ele era sereno, bonzinho até demais, apesar de nunca se importar demais com os dois. Era um segurança “Nota 50”, como dizia o novo slogan do presidente.

Paula era poetisa. Apesar de seu jeito ameaçador, briguento, lidava com palavras com uma suavidade incompreensível; as tratava como personagens reais. E, por azar, acostumou-se a tratar personagens reais como palavras (principalmente as mais banais e ordinárias). Ao mesmo tempo era importante e desnecessária ao governo. Porém como já estava alto o número de desocupados pelas ruas e bares, a mantiveram ali.

Essa era mais uma descrição de padrão de beleza ultrapassado que ela fazia, para que o governo não o repetisse. Tinha sido comum em 2025, 2030, por aí, quando o infinito culto ao brilho e a natureza havia quase acabado com o mundo. A moda agora ainda não tinha sido definida, mas seria algo rebelde, vermelho, belo, forte e rasgado. Provavelmente algumas drogas seriam liberadas e o governo libertaria as bandas de rock (estilo quase totalmente esquecido) da prisão.

Paula em particular preferia não pensar em nada. Levava o que devia lhe importar como se nada tivesse a tocado. Ao ritmo da vida, um brinde, ela dizia quando chegava ao seu apartamento e o encontrava lotado de amigos próximos que traziam cerveja escondida em frascos de sabão em pó.

sexta-feira, maio 28, 2010

Ocupação? Desconhecida

Havia três opções: dormir, ler, e escrever.

A primeira estava afora de cogitação, pois certamente eu tardaria muito a tal ainda que no escuro e no silêncio, devido a estranhos pensamentos em que pessoas queriam estar, quando na verdade eu as mantinha tão longe quanto possível.

Ler eu leria caso escrevesse algo. E o máximo que eu escreveria enquanto estivesse lendo seria o meu nome na primeira página em branco do livro.

Contudo, escrever agora é uma pressão.

No início, explodem dentro de mim incontroláveis e ingênuos fogos de artifício que eu apago forçada pelo piegas sentimento de humildade; sinceramente, fico sem saber qual parte é mais tola.

Quando começo a me organizar, já um pouco insegura de todo o sucesso inicial, todos os estouros fogem logo, levando consigo as idéias possíveis e a calma diante da falta de criatividade, grave problema. Enquanto procuro nos lugares óbvios algo que substitua a euforia, instala-se uma crise em minha mente, que mistura a falta de lembranças recentes e outras perguntas complicadas, por exemplo: “como?”.

Vem a tristeza. Que quando vem forte, mostra que o que dói é sentir falta dela. Sua cara limpa, onde se pode olhar sem se preocupar com a própria pessoa e sem sentir mais nada além da pura tristeza, nunca muda. Mudam os olhos embaçados pelas lágrimas de quem a vê.

Depois da mágoa tão avassaladora, não sobra nada dentro de mim, apenas algumas artérias mais importantes e outros fajutos componentes do meu corpo. Ocorre uma explosão parada. Esvazio-me completamente, numa tentativa de salvar-me de tanto choro e agonia; não percebo, porém, que assim comete-se um suicídio calado, pois fica-se sem nada para ter, lembrar, amar, odiar ou dizer.

Transforma-se a minha massa então viva até demais num ser invisível, que um mero suspiro faz voar longe, sem que haja resistência por minha parte, pois não há pelo que lutar.

Então, enfim algo me acerta, vai de encontro ao meu íntimo, tão profundo e intenso que reacende o que eu fora antes. Fico sem dúvida muito melhor, certa de que os sentimentos pelos quais passei trarão-me algum presente, como experiência.

Voltam sem demorar a ingenuidade, os fogos de artifício, e todo o percurso.

Desgraçado círculo vicioso da juventude... Embaralha-nos e distribui-nos pela mesa rindo, enquanto nós nada podemos fazer.

segunda-feira, maio 24, 2010

Derradeiros lenços de bolinha

“Tanta tristeza e tanta pena de mim e dos que obrigatoriamente me cercam que me imobilizo para apreciar a longínqua e suave beleza do que se passa ao redor, sugando com um último suspiro o que poderia me salvar; no entanto, me deixa ainda mais sozinha, isolada na minha estrela, estrela que na verdade eu sempre me considero quando assim estou. Até logo.”

Este bilhete, escrito rapidamente numa letra cheia de curvas quase medievais, ela deixou sobre a cômoda, propositalmente; que alguém um dia o encontrasse e o interpretasse melhor do que haviam feito.

Acostumara-se a pegar emprestado longos vestidos de sua irmã quando saía para dançar, e às vezes a cauda prendia num pé ou outro, mas agora permanecia amordaçada pelas próprias emoções a todo segundo, de saia curta e blusa pouco comportada, do jeito que enfim queria. Seus lábios secos não formaram um sorriso, apertaram-se para que continuassem sufocados lá dentro seus impulsos para desistir ou talvez para pensar melhor com a ajuda de dois ou três copos. Passou por eles uma última leve camada de batom, analisou-se no espelho e contou os passos até o corredor pela última vez. Pisou com cuidado nos tapetes da sala, como havia sido acostumada, para que não deixasse marcas nos caríssimos persas importados.

A fechadura do portão fez seu cleck despedaçado, melodia que havia embalado toda a sua vida. Ela ajustou mais o lenço brancos de bolinhas pretas no pescoço enquanto andava, tão apertado quanto pudesse. Suas vistas se limitavam ao chão e aos pés dos passantes; ainda que esta fosse a última vez, sobrava o embaraço de encarar desconhecidos olho no olho.

A inquietação, agora fragmentada como o cristal dos vasos que quebrara em seu quarto, ficava nas sombras dos becos pelos quais ela passava. Pegou um ônibus que levava ao outro lado da cidade e que como sempre rangia muito; ela já sentia-se mais leve, ainda com o espírito um pouco desencontrado, ansioso para encontrar a metade que havia estado longe.

Minutos longos passaram e poucos belos e antigos bairros como o antigo dela passaram. Enfim saltou do ônibus, desajeitada e próxima ao destino dado como certo. Caminhava tranquilamente ainda que tremelicasse por dentro, com o coração literalmente do tamanho da cabeça de um alfinete.

A grama brilhava ao anoitecer. Cores fortes brigavam no céu inalcançável enquanto o sol majestoso descia no horizonte e uma manta escura salpicada de estrelas era estendida. Os olhos dela faiscavam e escorriam por seu rosto lentamente.

Tão vazia por dentro que foi atingida em todo o seu ser por um frio tímido. Encontrava-se numa velha estação de ônibus, já parcialmente desativada. Não havia ninguém lá. Sentou-se nos degraus sujos sem se importar com suas roupas e esperou seu passe para a glamurosa liberdade, sua tática infalível e cheia de mentiras, seu sossego contado nos dedos, chegar.

E, numa moto, ele veio, minutos depois.

Com seu papo leve, regado ao ligeiro cheiro de álcool, ele a envolveu em um beijo só e em alguns suspiros, ajustou o capacete em sua cabeça com curtos cabelos pretíssimos e deu a partida. Ela agarrou sua cintura e sentiu-se novamente em casa, sendo uma só, sendo só para ele. Deixou pra trás o que havia seguido e sido, por tanto tempo, insuficiente.

sábado, maio 15, 2010

Gotas que mancham para sempre

“Eu não precisaria cursar Medicina e me especializar em cirurgia para entender como era fácil cortar a pele humana, viva, sadia e fresca. Mais simples do que meter a agulha no tecido, mais conveniente do que garfar a azeitona e saboreá-la.”

A faxineira limpava o chão do corredor escolar. Nas salas ao lado, gizes riscavam lousas, conhecimentos que duravam até o apagador fazer-se presente. Chegando ao banheiro, encheu o balde de desinfetante velho, tentou torcer um pano cheio de furos, ajeitou o coque de cabelo que se desmanchava. Abriu a porta que rangeu. As luzes estavam apagadas, os reservados fechados e com a claridade de um dia nublado que entrava pela pequena janela, o máximo que ela notou foi a presença de uma aluna um pouco encostada na parede, quase deitada. O ambiente era silencioso, uma mistura de sono e bebedeira passada que era comum aos estudantes. Não havia fumaça pelo ar, nenhuma bituca no ralo, era cedo ainda. Acendeu os interruptores e com luz, a mulher viu o vermelho chocante que espalhava-se pelo ladrilho.

Houve um grito mal controlado e a mulher fugia pelo corredor horrorizada, deixando caído o esfregão e o balde para trás.

O estilete agora enterrado entre as flores caipiras do jardim encerrou todo o medo sentido e todos os risos ouvidos. Um epitáfio bonito talvez fosse escrito; nada que lembrasse a maldade cometida ou as pragas prometidas, os dias e as noites de sofrimento que a agora vítima proporcionou.

A boca deste quieto corpo que jazia entreabria-se no aparelho fixo. Braços estendidos, o visor do relógio quebrado. A saia do uniforme tinha marcas de puxão e a camisa amassara-se pela força de um chacoalhão. Um cadarço mal amarrado, um salto mais gasto que o outro, entretanto nada disso importava. Em contato com o ladrilho frio e maculado até as pernas das meias 7/8 se manchavam. Olhos fechados agora prestavam contas com o outro mundo. Ainda que nem tenha aproveitado este!...

Enquanto isso a explicação do professor continuava em sua classe, seus cadernos ainda abertos sobre a mesa e a mochila pendurada na cadeira. Uma caneta vermelha e destampada rolou com o vento até cair com a ponta no chão.

Um sorriso macabro fez tremer os lábios do colega que sentava no fundo da classe. Ele queria beber água, mas já saíra dessa mesma aula há pouco.

quarta-feira, abril 28, 2010

O resto das minhas férias passadas

Sentava-se na porta de entrada, nem dentro nem fora de casa. O olhar fitava as folhas das árvores ao longe, que farfalhavam calmamente, e pelo reflexo dos óculos ela via a garagem machada de óleo sendo varrida. Carros passavam na rua, não que algum deles fosse lhe trazer alguma solução. Ela continuava ouvindo, além do suave ruído do varrer contínuo e dos piados dos passarinhos escondidos nos galhos, barulhos do computador. Estava ficando paranóica, louca. O computador estava desligado, pois ela não tinha tido coragem de ligá-lo ao amanhecer como de costume. Mas os barulhos continuavam em sua cabeça, ecoando sem parar. Ela estava arrepiada de frio, mas do que adiantava entrar em casa se dentro dela havia o mesmo ambiente gelado? Não podia ficar mais doente do que já estava com aquele ventinho fraco. Tinha tantas coisas pra fazer, tantas caixas pra arrumar, mas vivia no tédio e na solidão, sem mexer um músculo ou falar uma palavra a mais do que o necessário. Sabia que se arrependeria depois, mas por enquanto aquilo não tinha remédio.

terça-feira, abril 20, 2010

Minhas férias passadas

A angústia prendia os músculos, espalhava-se por seu corpo como um veneno. Seu olhar não tinha o brilho de antes e estava sempre à procura de uma resposta. A boca se contraía, não era possível imaginar que algum dia houve um sorriso ali, ela queria chorar, mas um grito mudo arranhava-lhe a garganta. Sua mente tão brilhante trabalhava como a de um animal encurralado, pensando em opções e saídas que àquela altura não existiam em abundância. Sentia-se solitária, sem poder pedir colo e sem um ombro para chorar. Enterrava as mágoas no fundo de seu pensamento, escondia os medos dentro de uma gaveta, esperando que eles desaparecessem como que por mágica. Justamente por não acreditar em ilusões, nada deixava a garota em paz. A dúvida sobre seu futuro tirava-lhe o sono e a atenção às coisas mais simples. Seus momentos de extrema e pura felicidade não eram tão presentes, se camuflavam pela razão. Qualquer simples tarefa incomum a tirava do sério e a sensação de dever cumprido não lhe dava prazer nenhum. Não se sentia relaxada nem em seus sonhos, pois eles eram todos pesadelos dos quais acordava cada vez mais escondida dentro de sua pequena grande alma. E o tempo não andava.
(Escrito no ano retrasado, acho)

sábado, abril 17, 2010

Bonequinha

E ele possuiu-me; o ato dessa vez o cansara, o extenuara, ao mesmo tempo em que pedia por mais, ansiava pelo fim. Meu rosto, imortalizado no susto, para sempre de boca aberta e receptiva, permanecia quieto. Meus cabelos, definitivamente amarelos, nem saíram do lugar.

Enfim, ele acabara.

Deitou ao meu lado, acendeu um fumo. Não me ofereceu: fumar com certeza queimaria meus lábios, destruiria o que eu era por dentro, ainda que pouco, só ar. Poluiria o que sobrara de intocado, minha alma, aonde ele não conseguia chegar.

Ele, embriagadíssimo, tinha me jurado paixão eterna há mais ou menos meia hora, mas já me desinflava. Cansado da minha pele emborrachada, do prazer solitário. Eu lhe trazia amor e fidelidade, ainda que precários, mas ele me julgava oca.

Resmungava baixinho, eu percebi. Essas idas e vindas de dedicação minha e desprezo dele tinham se tornado mais freqüentes agora que ele não tinha mais namorada. De vez em quando eu me conformava em ser realmente só isso, em outros tempos lágrimas que ele considerava falsas escorriam de saudade quando o imaginava com outra.

No fundo, a solidão em que eu costumava viver se satisfazia sempre quando havia a oportunidade, fosse com o que fosse. Conheci-o numa festa, estava largada num canto e ele chegou. Bastaram alguns drinks, um olhar cheio de charme, nenhuma conversa e eu aterrissava em sua cama. O que em mim era diferente, me fez presente tantas vezes? Ele nunca me contou.

Apagou o cigarro e virou pro outro lado; nem beijo de boa noite eu recebi. Ainda que eu recebesse sempre algum carinho no começo, imediatamente ele quis que eu dormisse, sumisse, ali não acordasse. Eu teclei um pouco no celular, me ajudaria se isso espantasse a falta de sono. Mas o silêncio do mundo, que dormia de conchinha com quem amava, esmagou-me de um jeito... Se aquilo parecia uma meiga fantasia para tantas outras garotas, tinha se tornado um pesadelo que me acorrentava ao nada, eu andava pelo vazio de um precipício a cada beijo mentiroso. E já durara noites demais.

Encará-lo, tão lindo, dormindo, e dizer adeus?

Soprar desculpas dentro de mim e não senti-las, bombear-me com máquinas de emoção que em qualquer uma serviam, tratar-me mais uma vez como bonequinha: eu não toleraria mais nada disso vindo de ninguém.

Tremi e enfiei os saltos de qualquer jeito, não olhei no espelho para não ter vontade de retocar a maquiagem e demorar ainda mais. Peguei sua carteira e deixei cair com cuidado na privada: se a água não danificasse nenhum cartão de crédito nem o couro de crocodilo, ele não a pegaria por nojo. E aí sim ele se recordaria de mim, mesmo tendo esquecido meu nome mais de uma vez, no fundo só lembrando quando se esforçava muito e não estava de porre.

Eu havia sido só mais uma de suas bonecas, encantadas por... por ‘o que’?, hoje me pergunto.

sexta-feira, abril 09, 2010

E no escuro...

- Amor?

- Que é?

- Me ajuda.

- O que foi?

- Levanta!

- Pra quê?

- Abre os olhos. Sai do sofá. Me ajuda!

Ele acordou da desconfortável soneca no sofá da pequena sala de tevê. Breu. Não enxergava um palmo a frente do nariz. Só o rosto da mulher iluminado pela luz de uma vela.

- A luz acabou. Não ouviu o estrondo do transformador da rua? Estou com medo que ela volte com força e queime os aparelhos. Tem que tirar tudo da tomada.

- E já fez?

- Eu não! Meter a mão atrás dos móveis, entre os eletrodomésticos, chegar perto da caixa de luz? Vá você e vá logo.

Bocejou. Mulher complicada essa... Agora, sentada na mesa da cozinha, apenas com a face cheia de luz, lembrava a imagem de uma santa.

Arnoldo preparava-se para a caça aos fios a puxar e já tendo que se conformar em desatar nós de cabos e cabos:

- Vê bem: não esquece do filtro de linha do computador de novo! - ela gritou da cozinha.

Ele ainda não se acostumara ao escuro, se espantava quando a luz não ligava se apertava os interruptores. Batendo a canela nas quinas dos móveis, agachava-se, desplugava um aparelho atrás do outro: televisão, aparelho de som, DVD, bateador elétrico, secador, chapinha, depilador elétrico, foi chegando à cozinha. Torradeira, microondas, forno elétrico, geladeira, freezer, liquidificador, batedeira. Alguns foram presentes de casamento, outros, puro capricho da mulher - necessidades que ela não necessitava.

Chegou à caixa de luz. Como podiam existir teias de aranha ali? Espantando uma mariposa que vagava sem direção, desligou a força total da casa. Um zumbido e silêncio.

Sentou-se a mesa com sua mulher, plena escuridão em volta. Sentiu-se melhor assim. Na leve penumbra não enxergava nenhuma cicatriz de plástica e não difenciava as mechas do cabelo tingido do natural. Soprou a vela. Beijou-a.

quarta-feira, abril 07, 2010

Perucas da vida

Adquiri um confuso medo de cortar o cabelo, concretizado após o 3º péssimo corte que deixaram em minha cabeça (sem contar uns dois que eu mesma aprontei). Assim, passei a cuidar sempre ao máximo da juba, para que a boa aparência dos fios resolvesse o aparente descaso com o tamanho da cabeleira. Mas o problema tornou-se incontrolável: muito gasto com produtos; muito tempo em tentar arrumar, pouco em que o cabelo aguentava em boas condições. Chegou o momento em que comecei a andar de nariz em pé, para tentar ver o mundo por baixo da burca capilar que caía nos meus olhos. Seria complicado colar nos provões da escola. E ver os postes na calçada. Com um galo a esconder, adiei ao máximo a 'tosa completa'.
A desculpa era dinheiro. Mas minha avó achou um salão baratinho e me levou até lá amarrada no banco do passageiro. Desprendeu-me, entramos na pequena casa e surpresa: a moça da recepção seria a que "apararia minhas pontinhas (duplas)". Evitei olhá-la muito, não queria ver seu cabelo nem saber de qual maluquice aquela mulher era capaz de fazer consigo mesma, pois imagine o que faria com outra pessoa...
Sentei. Suava frio. Mesmo. Coloquei no pescoço aquele grande tecido branco como uma corda no pescoço. Fechei os olhos, esperei a montanha-russa começar a acelerar e senti a mão tremer. Pode? E minha avó lia uma revista de fofocas, mais relaxada do que nunca. Ana, como se apresentou, borrifou água em minha franja, penteou e mandou ver. O espelho (e meu reflexo aterrorizado) se escondia atrás dela. Eu só via pedacinhos de fios caindo em meu colo. Ela passava confiante a navalha pelas pontas. Só uma leve desfiada, como era antes. Me deixou contemplar sua obra em minha cabeça por alguns segundos e voltou ao trabalho (e durante o tempo livre que tive cocei os olhos, não vi nada).
O resto é quase um branco. Deletei o resto da experiência. Achei melhor não me encarar de cara nova, só tirei uma foto e agora compartilho com vocês um resultado que ainda não vi e que só verei quando sentir que o cabelo crescer bastante. O que acham?