domingo, outubro 21, 2018

Listas importantes e desimportantes

Com uma ideia na cabeça – comparar a deturpação da imagem de mulheres históricas – e um prazo para entrega um pouco apertado, precisava de exemplos além da óbvia Cleópatra como grande ícone feminino. Queria consultar uma lista de mulheres conhecidas no senso comum, fáceis de lembrar, que foram incompreendidas por seus contemporâneos. Pesquisando no Google por "mulheres importantes na história", me decepcionei absurdamente com os conteúdos que encontrei e me motivei a escrever este texto. Nenhuma página que eu li se propôs a encerrar a discussão sobre quais são as mulheres mais importantes (dizem sempre que são muitas para entrarem na lista), mas possuem pontos em comum que são simbólicos.

Primeiro preciso dizer que a maioria das listas que eu encontrei foi feita em comemoração/homenagem ao dia da mulher – como se a importância dos feitos femininos devesse ser lembrada apenas durante um dia do ano. Nenhuma lista ultrapassava 30 nomes, sendo a maioria bem curta, com menos de 10. Mas vamos em frente que a situação só piora.

Algumas listas simplesmente elencam mulheres que foram as primeiras a desempenhar uma profissão comum aos homens em sua época: seus grandes feitos foram meramente conseguir trabalhar, incluir-se no mercado enfrentando a intolerância e a desconfiança, provando sua capacidade. Um homem que apenas trabalha, seja como atleta, médico, professor, cientista ou músico, está mudando o mundo? É claro que a quebra de padrões é importante ao abrir caminhos para diversas outras mulheres, mas a grande realização elencada nas listas está normalmente reestrita a esse fato. Eu esperava algo além disso, mas parece que deixamos de engatinhar em nossas conquistas há menos tempo do que eu imaginava. Outras listas ressaltam a “audácia, ganância e atrevimento” de mulheres ao disputar e negociar posições de poder. Essas características negativas desqualificam o pioneirismo como um desvio total da normalidade, despertado apenas em algumas poucas selecionadas.

Poucas listas detalham os feitos atingidos (descobertas, inovações, mudanças, conquistas, etc.), fatos anteriores e posteriores e suas biografias, e porque foram tão importantes para a história. A maioria compara a coragem de mulheres à de grandes homens, fisicamente falando – como se esta fosse uma característica masculina, estranha ao outro gênero, uma exceção. Nenhuma das mulheres lembradas tornou o mundo de alguma forma pior, mais injusto, menos bacana, etc. Todas são figuras benevolentes e contribuintes para o bem-estar mundial. Todas as listas apresentam uma foto de rosto ou de corpo de cada mulher, normalmente clicando o momento importante que a fez entrar para a lista.

Quase todas as mulheres agiram por/em companhia de/devido a/pela pressão de um homem, fosse ele o marido, pai, irmão, parceiro, etc. Ou seja, geralmente precisaram da influência de um homem para desenvolver suas habilidades, inseri-las no seu campo de atuação e dar-lhes o devido reconhecimento.

Pensei que estava sendo injusta e que minha pesquisa usava palavras muito simples em busca de resultados muito complexos – o subjetivo pelo objetivo. Decidi inverter a situação para testar essa hipótese.

Meu queixo caiu em 0,57 segundos, o tempo que o Google levou para realizar a pesquisa. Ao buscar por “homens importantes na história” ou “important men in history”, o termo homem/men é substituído por pessoa/figura. O gênero do ser humano de atuação tão importante deixa de ser relevante em função do que ele alcançou.

Desisti. Vamos com Cleópatra, a mulher, não o mito.

quarta-feira, outubro 10, 2018

Cristal

Hoje eu vou escrever como se fossemos sair hoje à noite. O que você prefere: quer que eu passe aí ou vem me buscar? Eu vou te buscar e vou no carro da minha mãe pra você escutar o ronco do motor. Passei perfume e hidratante, estou de lingerie que combina e vou cantando a plenos pulmões. Eu quero que você me beije só no rosto, mas esse pensamento desaparece quando te vejo entrando no carro. Quer mudar de música? Quer ligar o ar? Eu sei que não porque gostamos das mesmas músicas e do mesmo vento no rosto. Não quero que você saiba aonde vamos: vou por no GPS o endereço do lado oposto da rua, pra que você me indique o caminho sem saber o destino final.

Entrego as chaves para o manobrista. Se você não beber e quiser experimentar, pode dirigir na volta. Estou de salto e vestido, você de camisa, jeans e suas botas do Chico Bento. Ok, estou brincando, elas são legais.

A espera por uma mísera mesa para dois vai se estender por anos-luz, mas não tem problema. Vamos sentar no bar e conversar sobre família, amigos, cachorros e faculdades. Nada de nós.

Que delícia ser de uma felicidade transbordante, daquelas que não tem como não olhar, ainda melhor do que o aperitivo que pedimos. Seu carinho em mim é natural e não adianta resistir. Estou de olho em você, em cada detalhe e em tudo mais. Vamos dividir a pizza e você vai pedir uma brotinho doce depois.

Pode deixar a mão no meu joelho, no meu ombro, no meu pescoço, pode pegar no meu tornozelo. Eu vou fingir que a corrida de hoje cedo me deixou doída e dizer para você apertar a minha panturrilha. Vamos pedir mais uma água sem gás e rachar a conta. Comentar de alguém em uma mesa próxima, falar qualquer bobagem sobre uma pessoa que passou no salão; vou pedir para você repetir o que disse no meu ouvido enquanto eu penso em uma resposta engraçada.

Vou pagar o valet e vamos decidir para onde vamos. Espero que você nem se dê ao trabalho de sugerir um cinema. Se tiver vaga na garagem do seu pai, estamos do lado e vamos direto; foda-se que eu não trouxe nem uma caixinha para colocar as minhas lentes de contato. Se a opção pelo Zona Azul de amanhã cedo não permitir, ainda melhor: te deixo na sua casa para você conseguir um carro emprestado e vamos num pega até a casa da minha mãe. Você vai chegar primeiro na força e não na astúcia, mas tudo bem. Pode parar na porta enquanto eu manobro na garagem, eu vou entrar para pegar alguma coisa, uma mala que já estava meio arrumada. O meu cachorro vai te receber pulando e você vai conversar com o pessoal de casa, bebendo água, enquanto eu ouço o papo do meu quarto.

Bora. Você levanta as sobrancelhas para saber se eu peguei tudo. Talvez eu já tenha abandonado o salto e vá para o seu carro de Havaianas. Talvez você não se dê ao trabalho de ligar o GPS porque quer chegar logo. Vou segurando a sua perna e me sentindo a mulher mais sortuda do mundo por contar com você do meu lado. Nessa noite específica e em todas as outras.

É um caminho rápido e conhecido para voltar à sua casa. Por que o controle do portão nunca funciona de primeira? Pega as chaves no painel? Leva a minha bolsa? Chama o elevador?

Vou entrar pisando leve para não acordar ninguém nos outros quartos; você diz que não preciso me preocupar. Se eu encasquetar que quero ver televisão, vou te fazer mudar a mesa, o monitor, o videogame e os milhões de cabos para a frente da cama. Não vou até a cozinha para pegar dois copos de água, não adianta insistir. Quero aproveitar um momento sem você no quarto para deixar tudo no jeito e me espreguiçar na sua cama.

Tranca a porta, apaga a luz. Já que isso é tudo imaginação, vou deixar ligado um abajur que nem existe.

Eu vou fingir que esqueci o que acontece depois. Você vai ter que me lembrar nos mínimos detalhes quando me encontrar de novo. Por... favor?