domingo, março 14, 2021

Do fino

 E, quando ele encostou o rosto dele no dela para pedir uma cerveja, ela fingiu que não ouviu. Com cuidado, ela tocou o ombro dele para que ele repetisse o pedido.

O namorado dela, o mais alto de todos os presentes, estava de costas. E ela, sabendo disso, aumentou a pressão no instante em que pousou os dedos no ombro dele.

Era como dançar no escuro, de olhos vendados, à noite. Ele falou um pouco mais devagar e pediu, de novo, uma cerveja. Ela entendeu:

- Sim, uma cerveja.

Ela se esgueirou atrás do balcão e enfiou a mão no cooler cheio de gelo, álcool e sal para pegar uma cerveja. Limpou a lata na borda da camiseta e depois pegou uma para si mesma, a qual também limpou.

Entregou a lata olhando nos olhos dele e ele se aproximou do rosto dela, da mesma forma que tinha feito antes, para agradecer.

Esse gesto desnecessário acendeu uma luz na festa. E o namorado, atraído por aquele sinal, perdeu o interesse na conversa com um convidado, mas não viu o que estava acontecendo. Sentiu uma mistura de refluxo com dor de cabeça, o suficiente para distraí-lo enquanto os dois saíam da festa.

Sem dizer nada, as mãos deles se encontraram e eles fugiram dali. Desceram um andar, abriram a porta de saída desviando do olhar do segurança. Ela deu sinal a um táxi que estava passando, abriu a porta e indicou duas ou três ruas a seguir.

Ele se sentia macabro por trair o amigo, sair com a namorada dele da festa, ainda com a lata de cerveja pela metade. Não perguntou aonde iam e disfarçou para tomar o resto da bebida sem que ela ou o taxista vissem. Mas aquilo não era errado. Errado era ela continuar com o namorado, que, ele sabia, jamais poderia desejá-la tanto quanto ele. Ou era isso que ele sentia.

Eles chegaram a uma casa enorme e ela abriu a porta – ainda não tinham trocado uma palavra. Encostados num carro estacionado na garagem, ela o beijou com a maior das forças: agora ele tinha certeza, era impossível que aquilo fosse errado.

E ele percebeu que tudo nela, das tatuagens que ele não conhecia ao jeito que ela o chupava, tudo era... perfeito. Se não para o namorado, para ele, com certeza. Ele a segurou com um desejo que estava guardado, para não perder nem um milímetro do corpo dela e levantar sua saia justa aos poucos, puxando pela lateral da coxa a calcinha fio dental. Transaram apoiados no porta-malas do carro, numa noite de estrelas e olhares pouco atentos para a janela do vizinho, que poderia ver toda a cena se quisesse, mas continuava a dormir.

Quando ele tirou o cabelo dela para beijar seu pescoço, ela deu um passo para trás e se afastou. Como, se ele a apoiava no carro? O corpo dela estava distante, misturado na lataria. E a luz piscou.

Em um segundo, ele estava vendo a cena a partir da janela do vizinho, no andar de cima da casa ao lado. A luz piscou de novo, e ele encarou a si próprio do ponto de vista dela, não mais manchado de batom por tantos beijos, mas sem a jaqueta e com o cabelo bagunçado. Outra piscada na luz, e agora ele estava dirigindo o táxi que eles pegaram, tentando frear o carro.

Não deu tempo de virar para ver quem estava no banco de trás. A luz piscou mais uma vez e ele voltou à festa, com a cerveja na mão, no ambiente de música, gente demais em volta, teto baixo e tontura. Um amigo passou e o abraçou:

- Já bateu?

____________

Ele olhou em volta e a encontrou, de mãos dadas com o namorado, quase tão hipnotizada quanto ele, também com a lata na mão.

Ela abaixou a cabeça para ir ao banheiro. Apoiada na pia, respirava rápido. Aquilo tinha acontecido ou não? Ela ainda tinha alguma noção do tempo? Enquanto fazia xixi, se lembrou do jeito que ele tinha apertado sua bunda, da força que ele fazia contra seu corpo, do cinto que ela tinha se atrapalhado para tirar, lembrou da camisinha que tinha comprado algumas horas antes para usar com seu namorado, mas desejando que não fosse bem assim...

No espelho, procurou um chupão. Tocou o fecho do sutiã para ver se estava propriamente enganchado. Conferiu a calcinha, que estava do lado certo. Até cheirou os pulsos procurando outro cheiro. E não percebeu nada de estranho.

Mas ele estava do lado de fora do banheiro esperando por ela, claramente perturbado. Tinha nos olhos o mesmo desejo maluco, de alguma forma consumado, de algum jeito interrompido. Os dois sabiam o que tinham vivido.

Ao puxarem o ar para dizer alguma coisa, a luz piscou. Eles voltaram ao ponto inicial, em que ele pedia cerveja, encostando o rosto no dela.

Os dois se retesaram por um segundo, e decidiram continuar com aquele script. Se aquela era a única realidade em que eles poderiam ficar juntos, valeria a pena seguir, até que a luz piscasse de novo.