Ela sorriu quando encontrou o vizinho no elevador.
- Adorei ouvir o piano hoje. Foi muito bonito.
Ele riu. Quem estava tocando?
- Você, claro. Veio do seu apartamento.
- A que horas? Não é possível, eu estava fora. Deve ter sido algum outro vizinho.
Saem no corredor, boa noite, cada um para sua porta. Ele destranca e recebe um miado: Oi, Tobias.
No dia seguinte, o mesmo acontece. Ele sai às sete da manhã, é médico. Ela senta para tomar café e ouve ele se despedindo do gato, fechando a porta, chamando o elevador, gravando um áudio para um paciente.
Meia hora depois, ela ouve. O piano toca, no início tímido. Alguém puxa o banquinho para perto e fica confortável. A música evolui. Prossegue por mais um tempo entre vários ritmos que ela não consegue identificar. Até as oito e meia, que é seu horário de sair, alguém ainda está tocando piano.
Uma semana depois, ela voltou a encontrá-lo no elevador:
- Diga à pessoa que ela toca piano muito bem. É um prazer ouvir toda manhã.
E ficou vermelha. Ele não sabe que ela toma banho com a porta do banheiro aberta para ouvir o piano, dança com o vestido que vai usar para trabalhar e sorri para a porta fechada enquanto espera o elevador. Não que ela fique ouvindo o que se passa no vizinho (mas ela ouve).
- Eu até diria, mas me desculpe, não tem ninguém tocando piano no meu apartamento. Eu moro sozinho (riso) e não fica ninguém em casa quando eu saio (riso).
Não fica ninguém em casa nem quando ele sai e nem quando ele está, ele poderia ter completado.
- Mas você tem piano em casa, pelo menos?
- Tenho, era da minha avó. Mas não toco.
Ela sai do elevador e empaca no corredor. Decide que não adianta pedir desculpas se parece enxerida.
- Você deixa alguma música quando sai?
- Não, só se foi um engano. Um engano de uma semana, pelo que parece. O que você ouve?
- Eu ouço um piano, claramente alguém praticando no piano. Ouço aqueles exercícios bem básicos, e depois várias músicas, mas não sei quais são.
- Todo dia?
- Todo dia de manhã; depois não sei.
Ele sabe que ela pode ouvir o que se passa no apartamento dele, porque ele também já ouviu algumas coisas na vizinha. Ele ouve saltos toda terça-feira (dia de usar as sandálias mais assassinas que ela tem), ouve o choro depois de desligar o telefone, ouve muita cantoria de pagode, ouve o liquidificador uma vez por mês, para o bolo que ela leva à casa dos pais.
Eles encaram o corredor por alguns segundos e sentem vergonha de insistir na investigação. Que fique por isso mesmo que ela ouve alguém tocando piano no meu apartamento todo dia... Que o piano continue a tocar toda manhã...
Ainda que não tivesse nenhum compromisso cedo na segunda-feira, ele saiu no horário de sempre. Ao invés de pegar o elevador, bateu de leve na porta da vizinha.
- Quero saber de onde vem o piano. Posso esperar um pouco aqui?
Ela engasgou com a colherinha do café e com o miolo de pão. Claro que pode, quer um café?
- Já tomei, mas aceito outro. Só quero entender que piano é esse que tanto toca.
Para disfarçar o absurdo e passar o tempo, o esperado seria que os dois conversassem sobre qualquer assunto; mas estavam em silêncio total, atentos para os ruídos que viriam pelo corredor a qualquer momento. E vieram, da mesma forma de sempre. O começo tímido. O banquinho se arrastando. Os exercícios. A primeira música.
Os dois se olharam. A melhor opção era que ele a chamasse para dançar, ele de jaleco e ela de toalha na cabeça, no ritmo de um animado bolero.
Não foi dessa vez. Ele tirou os sapatos calmamente e abriu a porta com cuidado, ela logo atrás, descalça. Avançaram pelo corredor, a música cada vez mais alta. Meteu a chave na fechadura da porta, tentou abrir com a maior sutileza do mundo.
De costas para ambos, muito animado e alheio à preocupação dos dois...
O gato Tobias tocava piano.