sexta-feira, novembro 29, 2019

Subnutrida

Come assim, assado ou cru. Na verdade não come cru, não gosta. Come bem. Quase de tudo, tem seus gostos e seus favoritos, mas também tem aquilo de que não gosta. Come rápido, come acompanhada, come porque mandam, come logo cedo, come para trabalhar e come antes de dormir. Observa os outros comendo, toma muito cuidado ao comer. Não come frutas, não come sozinha em público, come por prazer e come para experimentar. Não sabe fazer nada pra comer, os outros têm que cozinhar. Há preferências e recusas, um prato predileto feito com amor e a falta de costume em relação a outras culinárias.

Mais importante do que o alimento, como é ingerido, com quem e quando, é o seu propósito para ela. Enfim, manter o corpo de pé. E para que?

Para dançar. Para atingir o grau máximo de perfeição, a nota completa, o giro correto, o pé exato e os braços certos. Sem alimento o corpo não tem forças, não fica de pé. E se não está de pé, não dança.

Falar com ela sobre comida não tem graça. Ela não vê graça na comida em si, mas no que ela proporciona. Ela consome com a esperança de que o metabolismo faça as massas, carnes e saladas tornarem-se fonte de energia. Come para o treino, antes e depois, para dar tempo de digerir e para obter resultados. Come sem pressão externa, não segue dietas, mas come concentrada. Come com um objetivo, além da saciedade e do prazer. Come porque o corpo demanda, e o corpo pede pela dança.

Come não só em gramas. Come o tempo entre um ensaio e outro, come as horas de preparação. Come o próprio suor e o das colegas, come a meia, o collant e as sapatilhas que usa no dia a dia. Come o público da apresentação, come a maquiagem e o gel no cabelo, come o figurino, as luzes e a trilha sonora. Come até a dor nos joelhos, que é palatável, come a professora. Saboreia o tempero do rigor, da exigência e dos elementos técnicos.

Tudo isso adquiriu um gosto conhecido. Em todos esses anos de dedicação, a dança criou o fogo a preparar todas as outras ações. Comer era um investimento em uma decisão maior, a de dançar por muitos e muitos atos, sem hora para acabar.

Mas parou. E não parou porque estava satisfeita, parou porque lhe tiraram o prato. Estando sem aquela receita estabelecida, diante de tantos sacrifícios que fez para juntar todos os ingredientes, não enxergou meios de continuar. E engordou, e emagreceu de novo, e algo mudou no seu corpo. Não é uma carência no exame de sangue, não são as dobras ou as magrezas da pele. Não é só isso. O que acontece é que a dança não a devora mais, mas o apetite permanece.