quinta-feira, novembro 19, 2020

Arquimedes e Teobaldo

 Arquimedes arruma a sala. Tem a pele clara, uma calvície intermediária, está levemente acima do peso. Usa chinelos, uma samba canção rosa-claro com corações vermelhos e camiseta preta. Está entre seus 40 e 50 anos.

Teobaldo conserta a mangueira na varanda do apartamento. É magro, pardo e chegou há pouco aos 40 anos. Usa jeans, tênis, uma camisa azul escura. Cabelo bem cortado, um pouco grisalho, ele não tem barba.

Em volta deles, Boris e Lulu, dois Jack Russel Terriers, andam pelo apartamento.

Arquimedes usa o aspirador. Depois a vassoura: varre o tapete, a poltrona e as almofadas. Teobaldo pega uma tesoura para desentupir os furos do esguicho da mangueira. Quando consegue, a água vem com tanta pressão que assusta os cachorros. Ele rega os vasos da varanda.

Arquimedes vai da sala aos quartos e retorna para varrer o que já estava limpo. Teobaldo pega uma bexiga vazia e estica o elástico, mirando qualquer coisa no prédio em frente. Boris e Lulu ficam de olho nas pombas que pousam no ar condicionado.

Teobaldo não queria brigar de novo. Arquimedes vem, puxa uma rusga da roupa dele. Ele não gosta, retruca uma ironia. O outro bufa, se lembra de uma coisa ruim. E você sempre faz isso. Eu estava quieto, não gosto de discutir. E como vamos deixar isso pra lá, ignorar o que a gente está vivendo?

– É isso; viver assim é uma tortura. Ter que olhar para você, todos os dias, sem tirar nem por. Só perceber que você, e eu também, estamos ficando velhos, nesse lugar abandonado por Deus, com esses cachorros que latem o dia inteiro.

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Jesuína entra no apartamento no dia seguinte. Ela tem 50 anos, é negra e alta. Veste uma blusa azul-clara, legging cinza e tênis baixos. Tem uma tiara no cabelo, uma bolsa rosa pequena a tiracolo e veio para a faxina de segunda-feira. Entra pé ante pé, observando o estado da casa depois do fim de semana.

Duas caixas de pizza e duas garrafas de vinho no lixo: seu Teobaldo. Louça limpa no escorredor, liquidificador ainda fora do armário, um tupperware de moqueca na geladeira e um bolo pela metade em cima da mesa: doutor Arquimedes. Uma jaqueta jogada na poltrona: seu Teobaldo. Controle do ar condicionado e da televisão no meio de um cobertor no sofá: doutor Arquimedes.

Boris e Lulu estão aninhados na caminha no corredor. Os dois quartos do apartamento têm as portas fechadas: sinal de que cada um dormiu no seu canto.

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Sentada na mesa da copa, Jesuína está no meio da xícara de café quando Arquimedes sai do quarto, já vestido para trabalhar. Eles se cumprimentam e ele pergunta sobre o fim de semana dela. Ela conta sobre a visita dos filhos e fala de qualquer outro assunto leve. Enquanto isso, Arquimedes come duas fatias de pão de forma, um iogurte com granola e um copo de suco de uva. Ele pega uma maçã, faz carinho nos cachorros, se despede e vai embora.

Teobaldo levanta mais tarde, quando Jesuína está tirando as roupas da máquina para estender. Ele dá bom dia e esquenta o café passado.

– E aí, seu Teobaldo. Como vocês estão?

– A mesma coisa. Talvez pior. Nem sei mais.

Ela pendura as meias ouvindo-o desmanchar cada nó que eles tiveram nesses dois dias, cada desentendimento. Ao fazer isso, Teobaldo segura o choro, respira fundo e chora. Jesuína larga as roupas e vem abraça-lo. Ele soluça e pede ajuda para fazer as malas.

– Vamos lá, seu Teobaldo. Me dói demais ver você assim, eu não quero que você e doutor Arquimedes briguem mais.

– Eu nem sei o que pensar. Vinte anos juntos pra não ficar mais.

Quando ele para de chorar, Jesuína começa.

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Teobaldo pegou o que mais precisava, disse à irmã que aceitaria o convite para ficar no apartamento dela nesses dias em que ela estava viajando e pediu uma comida para o almoço com Jesuína. Avisou a chefe que chegaria no escritório só à tarde.

Ele toma um banho e se arruma. Boris e Lulu disputam um restinho de frango com arroz que sobrou.

– Um tempo fora vai fazer muito bem para vocês. Vai dar pra por a cabeça no lugar, se distrair com outras coisas, respirar um pouco.

– Assim espero. Obrigado, querida.

Eles se abraçam, os cachorros latem. Teobaldo sai com duas malas.