domingo, março 08, 2020

Identidade

- Você por acaso não é o Luís?

- Sou.

Ou melhor, era. Até aquele momento.

Até aquele segundo, ele era o Luís, ex da Paulinha, que tinha saído com a Carol, que brigou com a Márcia, que beijou o Rodrigo numa festa, que perdeu a virgindade meio sem saber, que tinha planos de viajar para a praia no próximo fim de semana, que fugia do vizinho quando o encontrava na garagem do prédio, que odiava matar pernilongo, que fazia corrida de carrinho de supermercado contra os clientes das outras filas do caixa, que não tinha nenhuma cueca favorita, que inclusive estava sem um puto no bolso, que volta e meia tomava cerveja bem cedo, que não se convencia muito do que tinha escolhido para a vida, que não sabia escrever ‘episódio’ sem conferir no Google, que queria saber tocar guitarra um pouco melhor, que não tinha nem vontade de sair naquela noite, que volta e meia decidia sumir por uns dias e dizia que isso não era depressão, que perdia meia atrás de meia e tinha uma porção de peças desencontradas numa gaveta da lavanderia, que planejava chamar a Amanda para sair na terça-feira, que não tinha tempo ruim para fazer sexo se estivesse a fim, que punha raspas de limão em quase tudo, que odiava dormir no escuro e vivia atrás de uma nova banda favorita, que tinha um dedo mindinho secretamente muito menor do que o outro, que enfrentava qualquer coisa bêbado, que invejava quem ficava bem de camisa listrada, e que até aquele instante não conhecia a Teresa.

- Prazer. Eu sou a Teresa.

Retroapaixonada

Como posso escrever sobre o que eu gostaria de sentir, se não posso compartilhar esse sentimento com ninguém?

No fundo do meu coração partido, essa vontade surgiu quando eu estava inconsciente. Foi uma confidência num momento de fraqueza, da qual eu já me arrependi, que eu prometi que não ia acontecer mais. Mas eu estou sem força de fazer qualquer outra coisa, e pior, estou com apetite de fazer isso de novo.

Fecho os olhos e vejo você. Debaixo dos lençóis, sob os travesseiros, dentro das gavetas, atrás do colchão. Minha imaginação não se compara com a pilha de bagunças das suas lembranças. Você foi alguém que me fez comer na sua mão, e agora que estou despedaçada, só queria que você me apertasse de novo.

Só não me arrasto para você porque não tenho nenhum resto de dignidade em mim; fico na esperança de um contato telepático, uma coincidência qualquer. Algo que me devolva com o rabo entre as pernas sem que eu precise de qualquer explicação - porque, na minha cabeça, você sempre vai me querer também.

Faixas transversais

Vinícius cruzou a rua sem olhar. De repente encontrou, num instante muito rápido, a pessoa que vinha em sua direção.

Era Fabiana. Fabi, Fofinha, a falsidade em pessoa, o fim da felicidade de seu falo quando finalmente filou, em plenas férias em Florianópolis, a fugaz foda que tanto faria falta mais pra frente.

Depois daquela noite maravilhosa, quando todas as estrelas se alinharam na pousada de frente para o mar e proporcionaram a melhor química do mundo, nenhum dos dois tinha trocado uma única palavra.

Agora ela estava ali, a três linhas de distância na faixa de pedestres, se aproximando da gosma derretida que ele virou.

Quando Fabi o percebeu, parou. Fincou os pés com tanta força no asfalto que estragou o conserto malfeito do buraco recém-tapado. Abriu-se a cratera que estava ali semana passada, dentro da qual ela caiu.

Vinícius, apenas gosma derretida, tremia em sua consistência. Pouco a pouco escorreu para as profundezas daquele buraco na faixa de pedestres.

Na escuridão subterrânea da cidade, pontilhada pelas luzes que ultrapassavam os bueiros, os dois poderiam, com mais privacidade, se encontrar enfim, para o que quer que fosse, depois de tanto tempo separados. Até aquele momento Vinícius e Fabi se imaginavam muito longe um do outro, ainda que todo dia seus caminhos se cruzassem, sem saber, ao atravessar aquela mesma faixa de pedestres.