terça-feira, novembro 27, 2018

Túnel

Vou tentar explicar o que vi acontecer com o meu irmão deprimido.

Eu estava sentado numa poltrona em seu quarto, lendo para passar o tempo e fingindo tomar conta dele à meia-luz do final de tarde. Depois de muitas e muitas horas dormindo, ele rolou na cama pela centésima vez para cobrir o rosto com o travesseiro. Acabou caindo no chão de cara.

Para quem esperava uma reação, um gemido de dor ou um suspiro de fracasso, não veio nada. Ele continuou do mesmo modo que caiu, braços junto do corpo, rosto para baixo. A queda foi seguida apenas pelo silêncio.

O corpo começou a se mover deitado pelo chão... Mas não de um jeito normal. Não estava serpentando ou rastejando. Não era como um filme de animação de massinha, com quadros em stop-motion. Não flutuava acima do chão, como o skate de ‘De Volta Para o Futuro’. Não se arrastava nem era carregado. Meu irmão mantinha uma velocidade constante e não emitia qualquer som.

Seguia para longe da cama. Fazia manobras para desviar de quinas de móveis, passou por debaixo das portas. Esteve em todos os cômodos da casa e ninguém deu bola. No máximo riram e levantaram os pés. Acredito que a melhor aproximação seria a de que boiava numa correnteza, sem os altos e baixos da força da água ou qualquer obstáculo do leito.

Eu e o cachorro da casa acompanhávamos aquela bizarrice alguns passos atrás, sem coragem de intervir. Não parecia real, mas estava acontecendo – ele estava em movimento sem se movimentar. Vimos seu corpo descer as escadas sem problemas, alcançar a garagem e passar por debaixo dos carros. Pareceu tomar algum impulso para ultrapassar o portão e... chegou à rua.

Então finalmente levantou da inércia. Saiu correndo sem olhar para trás.

terça-feira, novembro 06, 2018

Olho por olho

Para enxergar o que é bem pequeno e passa quase despercebido aos meus olhos, conto com uma lupa antiga e ensebada na mesa do meu escritório. Deixo-a deitada em cima de uma pilha e textos, protegendo-os do vento do ar condicionado e de quem acha que pode arrumá-los. Com ar antigo, ela funciona como peso de papel chique, um reminiscente de uma profissão que acabei de começar a escrever.

A lupa tem quase 15 centímetros em seu comprimento – 2 terços são a lente grossa, 1 terço é o cabo de madeira pintado de preto. Tem umas letras pequenas escritas na borda inferior do vidro, algo tão minúsculo que eu precisaria de uma outra lente para enxergar com propriedade. Na ponta do cabo, um protetor de borracha ou plástico, não sei bem de que material, eu insisto em cutucar com a unha quando não tenho inspiração pronta.

Em dias de bagunça no trabalho, a lupa some num cenário amplo que não representa apenas o jornalismo, mas também outros pedaços da minha vida desfocada; vira detalhe pequeno do meu tesão em ver as coisas com mais clareza, procurar sempre, até encontrar o ponto que faltava. Às vezes é difícil de achá-la na confusão de bolsa de ponta cabeça, caixa de lenço de papel, escova de dente e uma cartela de remédio quase acabando. Quando preciso de ordem, junto os papéis que eu li e enchi de marcadores coloridos e os arrumo nem muito na ponta, nem muito no centro da mesa. Deposito a lupa pesada no centro exato da primeira folha.

Ela não é muito prática, admito; é desajeitada de segurar, desproporcional entre a finalidade do peso do vidro e o final amadeirado. Os documentos de letras miúdas que lhe dariam algum trabalho são escassos, sempre posso crescer a tela do computador. Sem a firmeza de uma mão que sabe que ali no cantinho do papel, milimetricamente posicionado, há algo a ser visto, ela tomba entre os dedos e cai em cima do pé. O vidro sobrevive, mas os dedos amassados doem.

A lupa fica em cima da minha mesa como uma mensagem, não como um objeto para o meu dia-a-dia. Quando encaixo a lente num olho aberto e fecho o outro, fazendo careta para meus colegas, ela serve para que os outros me olhem desproporcional à coisa pequena que eu sou, parte da engrenagem da escrita muito maior – e para que eu enxergue os outros, tão grandes, e aumente os seus detalhes, menores circunstâncias, no esforço de entender todo o mundo à minha volta.