segunda-feira, abril 29, 2019

Linha C, coluna 3

Vanessa estava na época de não saber o que queria, se desejava uma ilha deserta ou as fricções múltiplas de uma balada. Tanta coisa passava por sua cabeça e seu marido insistiu em marcar um cinema com muita antecedência, mantendo-a presa àqueles planos sobre os quais não tinha sido consultada.

Já muito antes da sessão, Fábio estava em histeria. Como seriam aquelas três horas de filme, se ele não tinha conseguido lugar nas poltronas de casal do cinema ultra super mega VIP? Para ela tanto fazia se não se sentaria do lado dele, a distância durante a sessão era uma alívio diante do compromisso matrimonial. Fábio insistia em criar estratégias para mover todos os espectadores da sala, garantindo que ele e sua esposa se sentassem juntos, grudados, inseparáveis. Vanessa não dava a mínima e se irritava com a insistência dele.

Ao chegarem à poltrona indicada em seu ingresso, Vanessa fez questão de confirmar: esse lugar é o meu, certo? Fábio confirmou em seco. A poltrona dela fazia par com um gostosão que pelo amor de Deus. Tão bonito que ela ficou envergonhada de olhar, já que ficaria à sua esquerda, sem nenhum obstáculo físico, apenas moral, por três horas. Ela pediu licença para sentar (na poltrona ao lado, não no colo dele) e tentou disfarçar sua satisfação com o que o destino lhe proporcionava.

Seu marido foi para seu lugar na fileira de trás, a dividir a namoradeira com um barbudo mal encarado, mas não largou o osso. Aos cinco minutos de trailer, veio anunciar todo cheio de si ao vizinho gostosão de Vanessa que ESSA MOÇA AQUI É A MINHA ESPOSA e ele GOSTARIA MUITO DE SENTAR DO LADO DELA NO FILME. Será que o gostosão poderia se mudar para sentar com o barbudo mal encarado? Ela quis dizer que não havia necessidade de nada disso, mas o próprio gostosão soube se defender com classe.

Segundo o gostosão, o moço na poltrona à sua direita, de quem ele estava separado por uma mesinha e um abajur, era o seu namorado. Infelizmente, ele não pretendia sair do lado dele para satisfazer outro casal.

Fábio tentou disfarçar a surpresa e saiu com o rabinho entre as pernas. Depois de ouvir a justificativa do gostosão, Vanessa quis confirmar o que tinha acabado de escutar. Sim, eles eram namorados. Ela enfim sugeriu, com delicadeza, que poderia trocar de lugar com o moço à direita para que ele e o gostosão pudessem assistir ao filme juntos. Sem forçar a barra ou esperar nada de ninguém.

O gostosão ficou ultra super mega agradecido com a proposta de dividir a namoradeira com quem realmente lhe interessava. Vanessa pegou sua bolsa e se aconchegou em sua nova poltrona, sozinha no canto da fileira. Ainda bem que a inconveniência de seu marido abriu espaço para a conveniência dos outros.

quarta-feira, abril 03, 2019

O devasso

Senti uma mão em minha coxa. O bafo quente e úmido na nuca. O gesto atrevido em pleno trem lotado decidiu me fazer de alvo passageiro, num desejo incontrolável. Por um segundo, ter entre os dedos aquilo de que o coração precisa.

Decidi corresponder àquele movimento vulgar. Deslizei minha mão para dentro do bolso ocupado, na ânsia de encostar na pele quente que me apertava. Precisava sentir aquela luxúria, aquela vontade iminente e furtiva entre o amontoado de pessoas dentro do vagão.

Nos tocamos e ele retesou a mão. Recolheu-se no mesmo instante da descoberta, já não mais um ato despercebido. Quis aparentar naturalidade, mas a rapidez com que virou o rosto denunciou sua intenção de fazer-me o mal. Falei bem próximo, ainda equilibrado:

- Você enfiou a mão na minha calça para me roubar.

Ele disse que não tinha feito nada daquilo.

- Eu senti sua mão no meu bolso tentando pegar meu celular.

Ele quis desconversar e desmentir a acusação.

- Eu e você sabemos o que você fez. Você quis pegar meu celular achando que eu não ia perceber. Eu percebi.

Ele insistiu em se fazer de inocente. O trem parou na estação e quem tentava acompanhar o episódio teve que se espremer para descer ou dar espaço ao público que embarcava. Puxei o ar para a ameaça final:

- Se você não descer desse trem agora, eu te arrebento na porrada.

Ele insistiu que estava quieto na dele e ali ficaria.

- Eu não estou a fim de brigar, é melhor você sair. Se você continuar aqui eu vou te dar um pau.

Segurei a porta com o pé e dei mais uma chance.

- O pessoal aqui também vai te bater quando souber o que você fez. Desce agora.

Ele escolheu sair no último segundo. Soltei a porta e todo o resto do vagão soltou a respiração. Estávamos distantes enfim. Eu não sofreria mais sua apalpação indevida; ele perdeu o butim e escapou das consequências. Não sofreria ali minha punição dura para sua safadeza com o corpo alheio.