terça-feira, dezembro 29, 2020

Fogo

Confusão, bombeiro, polícia, TV, ambulância, um monte de curiosos e tudo interditado. As amigas marcaram em outro lugar, mas Daniela acabou passando na rua do incêndio que tinha dado na rádio só para dar uma olhadinha, atraída pela curiosidade e pelo desvio mal feito no trânsito. Um carro saiu e deixou a vaga perfeita, o sinal que ela precisava para entrar rapidinho só pra ver uma coisinha.

Avisou no grupo que ia se atrasar, que fossem pedindo os pastéis que ela já chegava. Tirou o cinto, pegou a bolsa de mão, calçou as sandálias de salto muuuito alto e desceu do carro, atravessando aquele mar de gente e o cheiro de queimado.

Talvez o prédio dele fosse outro, talvez ele nem estivesse por ali àquelas horas, mas ela foi entrando e ninguém a parou. “Onde eu posso encontrar os moradores?”, perguntou, com a maior cara de pidona do mundo. Uma mocinha explicou: “Todos os da Torre A estão no salão de festas da Torre B. Quem você precisa encontrar?”

“Miltinho, Milton, o irmão dele chama Jacó. Ele é...”

E quando ela se preparava para descrever a simpatia, o jeito de mau, o sobrepeso e o sorriso engraçado, Miltinho se destacou na multidão que comia pizza fria e aguardava por notícias sobre o incêndio no prédio. 

Os olhares se cruzaram por cima das pessoas, a luz baixou um pouco e um saxofone brega começou a tocar. Ela atravessou toda aquela gente enquanto ele permanecia sentado, de braços cruzados e boné na cabeça.

Daniela deu um daqueles beijos tortos, que tecnicamente são na bochecha, mas por muito pouco não acertam a boca. Ficou de pé e ele não ofereceu o banquinho para ela sentar.

“Como você está? Estava passando e lembrei que você mora aqui. (Mentira.)”

“Gentileza sua, bom te ver. Bom, essa é a merda. Estamos esperando os bombeiros explicarem porque pegou fogo nos apartamentos. Por enquanto ninguém sobe.” O velhinho ao lado dele levantou para ir ao banheiro e ela não pensou duas vezes em pegar o lugar para sentar.

Pense em qualquer conversa normal que você teria naquela situação: o prédio de um ex-peguete (que – supostamente – te passou uma DST em uma transa precária na casa de um amigo) pegou fogo no meio de um feriado prolongado. Sobre o que você falaria em uma visita não-programada: solidariedade? Preocupação familiar? Empatia, papo motivacional, amenidades?

Nada disso. Nem ela nem ele falaram de coisas adequadas àquele momento. Conversaram como se estivessem numa mesa de bar, só que sem garçom nem cerveja, entre pessoas que gritavam no telefone, crianças chorando e gente que gravava tudo para os Stories.

Depois de duas horas de papo, os bombeiros avisaram que ninguém poderia dormir no prédio, interditado pela Defesa Civil, e ai de quem subisse para pegar qualquer coisinha. Entre gritos de “Eu vou processar a imobiliária!”, “Isso é um inferno!” e “Cadê a chupeta do meu filho?”, ele chegou bem pertinho do ouvido dela para perguntar:

“E onde você vai dormir hoje?”

“Dessa vez eu vou pra minha casa mesmo.”

Silêncio meio constrangedor.

“Uma outra hora a gente se encontra, Dani.”

“Ah, com certeza. (Nunca.) Fico feliz que esteja tudo bem. Eu já vou indo.”

Ele beijou a mão dela, bem cafajeste.

“Foi um prazer te ver hoje, mesmo desse jeito. Até mais.”

Miltinho teve que morder a mão enquanto ela se afastava, rebolando mais do que qualquer coisa entre aquele mar de gente desorientada.