terça-feira, dezembro 29, 2020

Fogo

Confusão, bombeiro, polícia, TV, ambulância, um monte de curiosos e tudo interditado. As amigas marcaram em outro lugar, mas Daniela acabou passando na rua do incêndio que tinha dado na rádio só para dar uma olhadinha, atraída pela curiosidade e pelo desvio mal feito no trânsito. Um carro saiu e deixou a vaga perfeita, o sinal que ela precisava para entrar rapidinho só pra ver uma coisinha.

Avisou no grupo que ia se atrasar, que fossem pedindo os pastéis que ela já chegava. Tirou o cinto, pegou a bolsa de mão, calçou as sandálias de salto muuuito alto e desceu do carro, atravessando aquele mar de gente e o cheiro de queimado.

Talvez o prédio dele fosse outro, talvez ele nem estivesse por ali àquelas horas, mas ela foi entrando e ninguém a parou. “Onde eu posso encontrar os moradores?”, perguntou, com a maior cara de pidona do mundo. Uma mocinha explicou: “Todos os da Torre A estão no salão de festas da Torre B. Quem você precisa encontrar?”

“Miltinho, Milton, o irmão dele chama Jacó. Ele é...”

E quando ela se preparava para descrever a simpatia, o jeito de mau, o sobrepeso e o sorriso engraçado, Miltinho se destacou na multidão que comia pizza fria e aguardava por notícias sobre o incêndio no prédio. 

Os olhares se cruzaram por cima das pessoas, a luz baixou um pouco e um saxofone brega começou a tocar. Ela atravessou toda aquela gente enquanto ele permanecia sentado, de braços cruzados e boné na cabeça.

Daniela deu um daqueles beijos tortos, que tecnicamente são na bochecha, mas por muito pouco não acertam a boca. Ficou de pé e ele não ofereceu o banquinho para ela sentar.

“Como você está? Estava passando e lembrei que você mora aqui. (Mentira.)”

“Gentileza sua, bom te ver. Bom, essa é a merda. Estamos esperando os bombeiros explicarem porque pegou fogo nos apartamentos. Por enquanto ninguém sobe.” O velhinho ao lado dele levantou para ir ao banheiro e ela não pensou duas vezes em pegar o lugar para sentar.

Pense em qualquer conversa normal que você teria naquela situação: o prédio de um ex-peguete (que – supostamente – te passou uma DST em uma transa precária na casa de um amigo) pegou fogo no meio de um feriado prolongado. Sobre o que você falaria em uma visita não-programada: solidariedade? Preocupação familiar? Empatia, papo motivacional, amenidades?

Nada disso. Nem ela nem ele falaram de coisas adequadas àquele momento. Conversaram como se estivessem numa mesa de bar, só que sem garçom nem cerveja, entre pessoas que gritavam no telefone, crianças chorando e gente que gravava tudo para os Stories.

Depois de duas horas de papo, os bombeiros avisaram que ninguém poderia dormir no prédio, interditado pela Defesa Civil, e ai de quem subisse para pegar qualquer coisinha. Entre gritos de “Eu vou processar a imobiliária!”, “Isso é um inferno!” e “Cadê a chupeta do meu filho?”, ele chegou bem pertinho do ouvido dela para perguntar:

“E onde você vai dormir hoje?”

“Dessa vez eu vou pra minha casa mesmo.”

Silêncio meio constrangedor.

“Uma outra hora a gente se encontra, Dani.”

“Ah, com certeza. (Nunca.) Fico feliz que esteja tudo bem. Eu já vou indo.”

Ele beijou a mão dela, bem cafajeste.

“Foi um prazer te ver hoje, mesmo desse jeito. Até mais.”

Miltinho teve que morder a mão enquanto ela se afastava, rebolando mais do que qualquer coisa entre aquele mar de gente desorientada.

quinta-feira, novembro 19, 2020

Arquimedes e Teobaldo

 Arquimedes arruma a sala. Tem a pele clara, uma calvície intermediária, está levemente acima do peso. Usa chinelos, uma samba canção rosa-claro com corações vermelhos e camiseta preta. Está entre seus 40 e 50 anos.

Teobaldo conserta a mangueira na varanda do apartamento. É magro, pardo e chegou há pouco aos 40 anos. Usa jeans, tênis, uma camisa azul escura. Cabelo bem cortado, um pouco grisalho, ele não tem barba.

Em volta deles, Boris e Lulu, dois Jack Russel Terriers, andam pelo apartamento.

Arquimedes usa o aspirador. Depois a vassoura: varre o tapete, a poltrona e as almofadas. Teobaldo pega uma tesoura para desentupir os furos do esguicho da mangueira. Quando consegue, a água vem com tanta pressão que assusta os cachorros. Ele rega os vasos da varanda.

Arquimedes vai da sala aos quartos e retorna para varrer o que já estava limpo. Teobaldo pega uma bexiga vazia e estica o elástico, mirando qualquer coisa no prédio em frente. Boris e Lulu ficam de olho nas pombas que pousam no ar condicionado.

Teobaldo não queria brigar de novo. Arquimedes vem, puxa uma rusga da roupa dele. Ele não gosta, retruca uma ironia. O outro bufa, se lembra de uma coisa ruim. E você sempre faz isso. Eu estava quieto, não gosto de discutir. E como vamos deixar isso pra lá, ignorar o que a gente está vivendo?

– É isso; viver assim é uma tortura. Ter que olhar para você, todos os dias, sem tirar nem por. Só perceber que você, e eu também, estamos ficando velhos, nesse lugar abandonado por Deus, com esses cachorros que latem o dia inteiro.

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Jesuína entra no apartamento no dia seguinte. Ela tem 50 anos, é negra e alta. Veste uma blusa azul-clara, legging cinza e tênis baixos. Tem uma tiara no cabelo, uma bolsa rosa pequena a tiracolo e veio para a faxina de segunda-feira. Entra pé ante pé, observando o estado da casa depois do fim de semana.

Duas caixas de pizza e duas garrafas de vinho no lixo: seu Teobaldo. Louça limpa no escorredor, liquidificador ainda fora do armário, um tupperware de moqueca na geladeira e um bolo pela metade em cima da mesa: doutor Arquimedes. Uma jaqueta jogada na poltrona: seu Teobaldo. Controle do ar condicionado e da televisão no meio de um cobertor no sofá: doutor Arquimedes.

Boris e Lulu estão aninhados na caminha no corredor. Os dois quartos do apartamento têm as portas fechadas: sinal de que cada um dormiu no seu canto.

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Sentada na mesa da copa, Jesuína está no meio da xícara de café quando Arquimedes sai do quarto, já vestido para trabalhar. Eles se cumprimentam e ele pergunta sobre o fim de semana dela. Ela conta sobre a visita dos filhos e fala de qualquer outro assunto leve. Enquanto isso, Arquimedes come duas fatias de pão de forma, um iogurte com granola e um copo de suco de uva. Ele pega uma maçã, faz carinho nos cachorros, se despede e vai embora.

Teobaldo levanta mais tarde, quando Jesuína está tirando as roupas da máquina para estender. Ele dá bom dia e esquenta o café passado.

– E aí, seu Teobaldo. Como vocês estão?

– A mesma coisa. Talvez pior. Nem sei mais.

Ela pendura as meias ouvindo-o desmanchar cada nó que eles tiveram nesses dois dias, cada desentendimento. Ao fazer isso, Teobaldo segura o choro, respira fundo e chora. Jesuína larga as roupas e vem abraça-lo. Ele soluça e pede ajuda para fazer as malas.

– Vamos lá, seu Teobaldo. Me dói demais ver você assim, eu não quero que você e doutor Arquimedes briguem mais.

– Eu nem sei o que pensar. Vinte anos juntos pra não ficar mais.

Quando ele para de chorar, Jesuína começa.

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Teobaldo pegou o que mais precisava, disse à irmã que aceitaria o convite para ficar no apartamento dela nesses dias em que ela estava viajando e pediu uma comida para o almoço com Jesuína. Avisou a chefe que chegaria no escritório só à tarde.

Ele toma um banho e se arruma. Boris e Lulu disputam um restinho de frango com arroz que sobrou.

– Um tempo fora vai fazer muito bem para vocês. Vai dar pra por a cabeça no lugar, se distrair com outras coisas, respirar um pouco.

– Assim espero. Obrigado, querida.

Eles se abraçam, os cachorros latem. Teobaldo sai com duas malas.

segunda-feira, outubro 05, 2020

Futebol de várzea

- Eu já falei que sem pagar não joga.

- Entende a dele hoje, Melzinho, acontece com todo mundo.

- Aqui não tem essa, não dá pra deixar nem uma vez.

- Eu sei que não pode, mas…

- Barico já assumiu que atrasou e depois compensa. Libera aí.

- Que caô pra tudo isso, e o caixa que tinha de reserva?

- Eu acerto a dele, taí os vinte que faltavam.

- Obrigada mano, tá contigo amanhã sem falta.

- Isso não tá certo, eu tô com o Melzinho.

- Qual é Imperatriz, semana passada foi você que me pediu pra cobrir o seu.

- Mas é que a patroa encrencou, tirou minha carteira.

- Nem vem, não tem essa. Meu time não entra com um a menos.

- Vou acertar com correção. Valeu, Pará.

- Engole essa agora, Melzinho!

- Nem com um a mais tu ganharia...

- Aqui é várzea, mas até a várzea tem regra, Cauan. Não entra sem pagar…

- E quando é do teu time?

- Não pode entrar alcoolizado também, né?

- Deixa disso Imperatriz, cê nem amassou a latinha antes de entrar em campo.

- Não pode jogar na chuva.

- Que a chuteira de açúcar derrete...

- Olha quem chegou!

- Ô Meia Doze, chegou aí!

- Enfim apareceu!

- Perdão, rapaziada!

- Pode vir até para uma pelada, Meia Doze vem na estica. E o perfume?

- É que deixei a morena no salão.

Meia Doze, cadê a contribuição?

- Leva, Imperatriz.

- Fechado. Hoje temos até comissão técnica…

- Resolvendo pros dois times...

- A ilustre presença…

- Do seu Ronaldo!

- Uma salva de palmas!

- É, tô pra assistir. Pará me trouxe.

- Fica na sombra, tem água e tudo, seu Ronaldo. O senhor fica à vontade, tá em casa.

- Tô tranquilo com vocês, hoje é dia.

- A carona da volta eu faço, seu Ronaldo, o senhor fica tranquilo.

- Agradeço, Meia Doze.

- Melzinho, Juca fica de que lado hoje?

Um tempo aqui, outro com você.

Aí troca pelo Lapa.

Cauan, mais respeito com o Lapa.

- Lapinha um dia chega lá.

- Lapinha vai crescer ainda.

- E Lapinha não vai ter nem tempo de jogar aqui.

- Magina, gente. Vocês tão doidos.

- Que é isso, a gente tem que te valorizar.

- Não tem problema.

- Nunca deixa ninguém falar uma coisa dessas de você. O Cauan não tem noção.

- Tá tudo bem, irmão.

- Então tá. Falta quem?

- Tamos todos.

- Falta ninguém. E todo mundo pagou – só o Barico que não, mas…

- Já tá certo, fiz a dele.

- Ihhh, não sabia! Podia ter feito a minha também!

- Capitão que é capitão paga até pro time jogar.

- Tô brincando, tô brincando...

- É isso, ele resolve por nós.

- Um dia eu, outro dia eles.

- E nessa não tem regra nenhuma.

- Ô Imperatriz, tu é chato, hein?

- Pior que ele, só você.

- Que nada. Pior que nós, só nós.

- Olha, às vezes você acerta, Cauan.

- Eu me esforço. E desculpa aí, Lapinha.

- Quero tentar esse lado do campo, nunca comecei do lado esquerdo.

- Fica à vontade, pode até começar com a posse.

Vai que dá sorte pra vocês, uma vez.

- Não adianta, enquanto ele não resolver o motor do Vectra não quer saber de jogar bola direito.

- Semana que vem tiro ele da oficina.

- De vez?

- Acho que sim, Meia Doze.

- Muito bom, muito bom...

- Aí não dá né, como é que cê vai jogar sem caneleira?

- Esqueci, mas não precisa.

- Pelo menos na esquerda.

- Tá tranquilo.

- Toma a minha, pode pegar

- Então valeu, Juca.

- Fica cada um com uma. Melhor que nada.

sábado, setembro 19, 2020

Pirâmide

Hoje trabalhei até tarde, me frustrei com tudo e dormi de roupão. Dormi um sono sem ter sono, só pra não ficar acordada sem o que fazer; não aguentava mais estar perdida.

Acordei fora do espaço e do tempo, sem nenhuma cor nem cheiro, às nove e quarenta da noite. Saí de um sonho estranho para me preparar para outro. Comi voando um macarrão na manteiga com pouco queijo, tomei um banho bem quente e lavei o corpo com força.

O que colocar? Eu já sabia, mas quis provar outras coisas só pra me atrasar. Não entro nessa saia, essa blusa me faz suar, esse sapato me aperta, esse vestido não dá certo sem meia calça. E eu não queria pôr meia; fui de coturno alto, calça justa e uma jaqueta que não era minha. Dei um jeito de não levar bolsa, não queria carregar absolutamente nada.

O cabelo estava solto, finalmente um dia em que ele ficou perfeito porque quis. Não enrolei tentando alguma maquiagem; deixei estar, porque à noite todos os gatos são pardos, só precisam de um pouco de hidratante e batom vermelho. Penteei a sobrancelha e passei perfume, fiquei sem tempo de me depilar ou de fazer a unha. E sair assim é libertador – pulei o compromisso de estar perfeita, adequada, pronta. Estou bem crua.

E como sempre, eu cheguei atrasada, furei a fila, fiz amigos do lado de fora. E virei uma tequila enquanto tomava um chopp, depois mais um e mais uma. É noite de dançar de cabeça baixa, deixar rolar. Tenho uma vontade que só aparece nesses momentos, de me enfiar entre um monte de gente pra viver. E nessas eu sou craque em achar que tenho o controle de tudo, de todos, da situação... Só não de mim. Na mistura de barulho, bebida, gente, cheiro, vontade de ir no banheiro pra fazer xixi e pra transar, eu quero me perder de novo.

Vou fazer o que der na telha. Muito, muito dificilmente serei pega desprevenida; eu te vi desde que você chegou, do título até aqui, e você achou que eu não perceberia a sua leitura... Eu sorri e te pedi um cigarro como quem não quer nada, para ter algum assunto pra conversar. Quem sabe ali no cantinho? Que legal tudo isso que você falou. Eu também tenho um monte de histórias boas pra contar. Tenho inclusive a dica de uma padaria aqui perto.

Dançar, só mais um pouquinho, porque eu adoro essa música. E agora vamos, que a fila para pagar diminuiu. Eu fiz amizade com o segurança quando cheguei e ele me abre um caixa vazio – eu te puxo para vir comigo. Mas as comandas são separadas, lógico. Depois eu penso aonde estou indo e que horas são, isso não importa, eu já fiz esse caminho tantas vezes.

Mão no bolso com medo de ser roubada, vamos subir a rua. E encontrando as nossas coincidências, os nossos desencontros, tudo num quarteirão, no balcão da padaria, no táxi indo embora, quando descobrimos que moramos no mesmo prédio.

Por essa eu não esperava. Você mora lá mesmo? Por que não falou antes? Quem poderia imaginar que eu ia encontrar meu vizinho nessa noite...

E que nós moramos no mesmo apartamento há anos, mas não nos conhecíamos de verdade.

sábado, agosto 15, 2020

Mare maré

Quando você for dormir

Eu vou sentar para escrever.

E das palavras que eu deixar no seu sonho

Vão vir as inspirações para eu criar uma história.

A história de uma praia.

 

Cujo mar se afastava cada vez mais da costa,

Ondas que batiam para se recolher, uma a uma,

O sol a pino sobre a areia úmida.

 

O mar se recolheu totalmente

Sem perspectiva de voltar.

Você decidiu andar em direção ao horizonte

Onde ainda via um resto de água.

 

O sal queimou os seus pés

os peixes se debatiam

as aves exaustas caíam do céu

os navios encalhados

os corais descobertos

Em linha reta

Para o fundo.

 

E você andou e andou

O horizonte às vezes parecia mais perto, e às vezes mais longe.

Você continuou andando

Cada vez menos atento ao sol que se punha.

 

Quando cansou de andar, você sentou

Na proa de um barco naufragado.

Já era quase noite

E nada do horizonte chegar.

 

Era melhor descansar por ali, antes que você acordasse

E o sonho acabasse

Quando você estivesse debaixo d’água.

 

Enfim, quem era você nessa história?

O pescador que quer puxar o texto da água a qualquer custo?

O anzol à espreita para prender as ideias que passam?

A isca exibida a atrair as histórias?

Ou o peixe idiota, que boiava com fome, e morreu pela boca?

sexta-feira, julho 17, 2020

A tampa do liquidificador

De plástico, o copo foi ao chão. E rachou inteirinho, sobrou só a alça intacta.

Como colar um copo de liquidificador, que precisa aguentar as rotações, impactos, forças, e ainda dar conta de picar, moer, misturar de sólidos a líquidos? Tentar colar é porquice, não vale a pena.

- Eu compro um copo novo amanhã, eu juro. Eu sei onde achar, é só passar nessa lojinha.

E o amanhã transformou-se em dia seguinte, que virou final de semana, que passou à próxima semana, que ficou para o fim do mês; e enquanto isso as receitas se adaptaram ao processador, a bater na mão e a fatiar os ingredientes ao menor tamanho possível.

Todos os esforços que permitissem normalizar a ausência de um liquidificador para a cozinha. 

Pois bem, chegou a pandemia. Do desespero de não saber se teria emprego para ganhar dinheiro, se teria dinheiro para sobreviver, se ao menos iria sobreviver, o liquidificador compreensivelmente deixou de ser a primeira das preocupações da vida dele. Afinal, estava impedido, por medidas sanitárias globais, de visitar a lojinha onde encontraria pessoalmente o copo que servisse ao seu modelo.

A desculpa que parecia passageira esticou-se no horizonte. O tédio dos dias em casa aumentou sua vontade de cozinhar de tudo, de rabada a rabanada, e ele não tinha o bendito copo. Num dia de súbita empolgação, entrou online no Magazine Luiza, nas Lojas Americanas, no Extra e até no Enjoei, decidido a encontrar um substituto.

No fim descobriu o número da lojinha de esquina em que planejava ir antes de tudo isso. Ligou e em cinco minutos o copo estava a caminho na garupa do motoboy, já devidamente higienizado.

Ele recebeu a sacola, que ficou por três dias atrás da porta, junto com a saudade atrasada de cozinhar decentemente. E se tivesse esquecido todas as manhas de fazer um bolo?

Será que o novo normal para ele seria não saber mais cozinhar? Que prognóstico deprimente.

Enfim abriu a sacola, resgatou o copo novo (lavou mais uma vez) e encaixou no liquidificador. Perfeito, feitos um para o outro. Tacou uma lata de leite condensado, uma lata de creme de leite, uma lata de leite, uma xícara de farinha de trigo, uma xicara de açúcar, três ovos - e apertou o pulsar na velocidade máxima. 

E virou ele mesmo bolo. Só que cru.

Ele não especificou que o copo precisava vir com tampa.

quarta-feira, junho 17, 2020

A mesa roxa

- Estamos aqui reunidos, ao redor desta mesa roxa...

Os sete homens se encararam. Alguns deles se conheciam muito bem; dois deles, o primeiro e o último a chegarem, estavam incrédulos com aquela reunião. Era algo que eles jamais teriam imaginado.

Um deles, um pouco mais deslocado, tirou do bolso o tabaco e o papel e começou a enrolar um cigarro. Ninguém tinha dito que não podia fumar naquela mesa.

Outro, o mais novo de todos, fingia que aquela história não era com ele. Ele não entendia como o sentado à sua esquerda, com os braços tatuados à mostra, tinha sido convidado para estar ali. Mas estava, tanto quanto ele. Como era possível?

O segundo a chegar não queria aparentar, mas estava totalmente envergonhado com aquilo. Ainda, ou já meio bêbado, demonstrava a sua maior façanha: equilibrar um copo sobre a barriga, que escapava da camisa.

O seguinte estava enfurecido. Não tinha sido combinado que ele seria chamado para sentar, achou que ficaria só no cantinho, talvez conversando com a garçonete do bar. Mas quando chegou, lá estava a cadeira com o seu nome marcado.

Enfim, era desconfortável, mas eles já tinham se reunido antes, só não sabiam. Os seus nomes compunham a lista estúpida de um caderno, e agora eles juntavam suas forças por algo maior. A voz prosseguiu:

- Estamos aqui reunidos, ao redor desta mesa roxa, para nos tornarmos uma sanguessuga. A mais forte que jamais existiu. Essa é a nossa única chance de vitória.

Todos se inclinaram para ouvir melhor aquele plano. O segundo derrubou na mesa o copo que apoiava sobre a barriga; o quinto, que nem o conhecia, passou um pano para secar o líquido derramado.

- Mas essa não será uma sanguessuga convencional. Para funcionar, ela terá que agir de dentro para fora. Estará na carne, nadando no músculo, mordendo a parede interna da pele, agindo para trazer para dentro tudo que há de ruim no exterior.

Um pigarro. Seguido por um longo assovio.

- Estamos entendidos quanto ao propósito do animal?

Só um deles compreendeu o funcionamento biológico da coisa; e para imitar o que fumou primeiro e mostrar sua superioridade, ele tirou um maço de cigarro do bolso e ofereceu a todos. Dois aceitaram, e o isqueiro passou entre eles.

- Temos um combinado. Vamos sugá-la até ela morrer.

*

Ela acordou com uma dor na lateral da coxa. Mas nem doía tanto assim.

Ao trocar de roupa, notou um ponto roxo. Sentiu-o um pouco mais quente do que o resto da pele e, com certeza, mais sensível também.

Não lembrava de ter batido a perna em lugar nenhum. Afinal, estava em quarentena e não saía de casa. Devia ter esbarrado em alguma mesa, no braço da cadeira. Numa quina qualquer.

Comparou o hematoma com a altura dos seus móveis: eram todos mais altos ou mais baixos do que o roxo. E a dor seguia ali, perfeitamente redonda, mais escura a cada dia, pulsando... Consumindo a sua paz.

sábado, maio 16, 2020

Olha que situação

Se eu quisesse sair de casa para ver você

Estando convencida

De que o tombo vale a pena

Que compensa a vergonha que nem existe

 

Eu pegaria meu carro

Colocaria mais um pouquinho de gasolina

Encheria os pneus

E pegaria a estrada

 

Quase encostando no guard rail

Pagando pedágio sem parar

Sem tocar o asfalto

Até a sua cidade

 

Nem sei onde você está

Teria que descobrir, dar uma desculpa

Pra parar o carro na frente da sua casa

Sem coragem de descer

 

Porque isso é tudo fantasia

Eu vou sair sem medo de casa

Na verdade, com menos medo do que o normal

Vamos tirar férias

 

Eu quero um tempo do seu lado

Qualquer minuto de diferente

Um lençol amassado

Dois cachorros brigando

 

A certeza de que vou estar no meu de sempre

Cada momento em um lugar

E que vou sempre aceitar

Estar assim de qualquer jeito

 

Só porque uma vez eu olhei para você

Na verdade, a primeira vez

E você sorriu para mim

Do jeito que eu ia querer

Que você fizesse toda vez

domingo, abril 05, 2020

Os vizinhos

Ela sorriu quando encontrou o vizinho no elevador.

- Adorei ouvir o piano hoje. Foi muito bonito.

Ele riu. Quem estava tocando?

- Você, claro. Veio do seu apartamento.

- A que horas? Não é possível, eu estava fora. Deve ter sido algum outro vizinho.

Saem no corredor, boa noite, cada um para sua porta. Ele destranca e recebe um miado: Oi, Tobias.

No dia seguinte, o mesmo acontece. Ele sai às sete da manhã, é médico. Ela senta para tomar café e ouve ele se despedindo do gato, fechando a porta, chamando o elevador, gravando um áudio para um paciente.

Meia hora depois, ela ouve. O piano toca, no início tímido. Alguém puxa o banquinho para perto e fica confortável. A música evolui. Prossegue por mais um tempo entre vários ritmos que ela não consegue identificar. Até as oito e meia, que é seu horário de sair, alguém ainda está tocando piano.

Uma semana depois, ela voltou a encontrá-lo no elevador:

- Diga à pessoa que ela toca piano muito bem. É um prazer ouvir toda manhã.

E ficou vermelha. Ele não sabe que ela toma banho com a porta do banheiro aberta para ouvir o piano, dança com o vestido que vai usar para trabalhar e sorri para a porta fechada enquanto espera o elevador. Não que ela fique ouvindo o que se passa no vizinho (mas ela ouve).

- Eu até diria, mas me desculpe, não tem ninguém tocando piano no meu apartamento. Eu moro sozinho (riso) e não fica ninguém em casa quando eu saio (riso).

Não fica ninguém em casa nem quando ele sai e nem quando ele está, ele poderia ter completado.

- Mas você tem piano em casa, pelo menos?

- Tenho, era da minha avó. Mas não toco.

Ela sai do elevador e empaca no corredor. Decide que não adianta pedir desculpas se parece enxerida.

- Você deixa alguma música quando sai?

- Não, só se foi um engano. Um engano de uma semana, pelo que parece. O que você ouve?

- Eu ouço um piano, claramente alguém praticando no piano. Ouço aqueles exercícios bem básicos, e depois várias músicas, mas não sei quais são.

- Todo dia?

- Todo dia de manhã; depois não sei.

Ele sabe que ela pode ouvir o que se passa no apartamento dele, porque ele também já ouviu algumas coisas na vizinha. Ele ouve saltos toda terça-feira (dia de usar as sandálias mais assassinas que ela tem), ouve o choro depois de desligar o telefone, ouve muita cantoria de pagode, ouve o liquidificador uma vez por mês, para o bolo que ela leva à casa dos pais.

Eles encaram o corredor por alguns segundos e sentem vergonha de insistir na investigação. Que fique por isso mesmo que ela ouve alguém tocando piano no meu apartamento todo dia... Que o piano continue a tocar toda manhã...

Ainda que não tivesse nenhum compromisso cedo na segunda-feira, ele saiu no horário de sempre. Ao invés de pegar o elevador, bateu de leve na porta da vizinha.

- Quero saber de onde vem o piano. Posso esperar um pouco aqui?

Ela engasgou com a colherinha do café e com o miolo de pão. Claro que pode, quer um café?

- Já tomei, mas aceito outro. Só quero entender que piano é esse que tanto toca.

Para disfarçar o absurdo e passar o tempo, o esperado seria que os dois conversassem sobre qualquer assunto; mas estavam em silêncio total, atentos para os ruídos que viriam pelo corredor a qualquer momento. E vieram, da mesma forma de sempre. O começo tímido. O banquinho se arrastando. Os exercícios. A primeira música.

Os dois se olharam. A melhor opção era que ele a chamasse para dançar, ele de jaleco e ela de toalha na cabeça, no ritmo de um animado bolero.

Não foi dessa vez. Ele tirou os sapatos calmamente e abriu a porta com cuidado, ela logo atrás, descalça. Avançaram pelo corredor, a música cada vez mais alta. Meteu a chave na fechadura da porta, tentou abrir com a maior sutileza do mundo.

De costas para ambos, muito animado e alheio à preocupação dos dois...

O gato Tobias tocava piano.

domingo, março 08, 2020

Identidade

- Você por acaso não é o Luís?

- Sou.

Ou melhor, era. Até aquele momento.

Até aquele segundo, ele era o Luís, ex da Paulinha, que tinha saído com a Carol, que brigou com a Márcia, que beijou o Rodrigo numa festa, que perdeu a virgindade meio sem saber, que tinha planos de viajar para a praia no próximo fim de semana, que fugia do vizinho quando o encontrava na garagem do prédio, que odiava matar pernilongo, que fazia corrida de carrinho de supermercado contra os clientes das outras filas do caixa, que não tinha nenhuma cueca favorita, que inclusive estava sem um puto no bolso, que volta e meia tomava cerveja bem cedo, que não se convencia muito do que tinha escolhido para a vida, que não sabia escrever ‘episódio’ sem conferir no Google, que queria saber tocar guitarra um pouco melhor, que não tinha nem vontade de sair naquela noite, que volta e meia decidia sumir por uns dias e dizia que isso não era depressão, que perdia meia atrás de meia e tinha uma porção de peças desencontradas numa gaveta da lavanderia, que planejava chamar a Amanda para sair na terça-feira, que não tinha tempo ruim para fazer sexo se estivesse a fim, que punha raspas de limão em quase tudo, que odiava dormir no escuro e vivia atrás de uma nova banda favorita, que tinha um dedo mindinho secretamente muito menor do que o outro, que enfrentava qualquer coisa bêbado, que invejava quem ficava bem de camisa listrada, e que até aquele instante não conhecia a Teresa.

- Prazer. Eu sou a Teresa.

Retroapaixonada

Como posso escrever sobre o que eu gostaria de sentir, se não posso compartilhar esse sentimento com ninguém?

No fundo do meu coração partido, essa vontade surgiu quando eu estava inconsciente. Foi uma confidência num momento de fraqueza, da qual eu já me arrependi, que eu prometi que não ia acontecer mais. Mas eu estou sem força de fazer qualquer outra coisa, e pior, estou com apetite de fazer isso de novo.

Fecho os olhos e vejo você. Debaixo dos lençóis, sob os travesseiros, dentro das gavetas, atrás do colchão. Minha imaginação não se compara com a pilha de bagunças das suas lembranças. Você foi alguém que me fez comer na sua mão, e agora que estou despedaçada, só queria que você me apertasse de novo.

Só não me arrasto para você porque não tenho nenhum resto de dignidade em mim; fico na esperança de um contato telepático, uma coincidência qualquer. Algo que me devolva com o rabo entre as pernas sem que eu precise de qualquer explicação - porque, na minha cabeça, você sempre vai me querer também.

Faixas transversais

Vinícius cruzou a rua sem olhar. De repente encontrou, num instante muito rápido, a pessoa que vinha em sua direção.

Era Fabiana. Fabi, Fofinha, a falsidade em pessoa, o fim da felicidade de seu falo quando finalmente filou, em plenas férias em Florianópolis, a fugaz foda que tanto faria falta mais pra frente.

Depois daquela noite maravilhosa, quando todas as estrelas se alinharam na pousada de frente para o mar e proporcionaram a melhor química do mundo, nenhum dos dois tinha trocado uma única palavra.

Agora ela estava ali, a três linhas de distância na faixa de pedestres, se aproximando da gosma derretida que ele virou.

Quando Fabi o percebeu, parou. Fincou os pés com tanta força no asfalto que estragou o conserto malfeito do buraco recém-tapado. Abriu-se a cratera que estava ali semana passada, dentro da qual ela caiu.

Vinícius, apenas gosma derretida, tremia em sua consistência. Pouco a pouco escorreu para as profundezas daquele buraco na faixa de pedestres.

Na escuridão subterrânea da cidade, pontilhada pelas luzes que ultrapassavam os bueiros, os dois poderiam, com mais privacidade, se encontrar enfim, para o que quer que fosse, depois de tanto tempo separados. Até aquele momento Vinícius e Fabi se imaginavam muito longe um do outro, ainda que todo dia seus caminhos se cruzassem, sem saber, ao atravessar aquela mesma faixa de pedestres.