domingo, setembro 16, 2018

Eu passo

Eu estava no box deixando a água quente do chuveiro escorrer pelas minhas costas. Mãos ora no rosto, ora apoiando na parede. Eu continuava tão desanimado e desmotivado como em qualquer outro dia e a minha tristeza tinha tradução física: uma dor no ombro que não ia embora por nada. Molhado da cabeça aos pés, eu simulava um lugar aconchegante para sofrer. Sem sucesso.

Olhei para o lado e enxerguei, depois do vidro e através do vapor, uma mulher encostada na porta. Me olhava sem expressão.

O que eu deveria pensar? Eu tinha trancado a porta do apartamento, a do quarto, a do banheiro e se pudesse também teria passado chave na do box. Ninguém tinha nenhuma cópia. Eu não tinha ouvido nenhum barulho de arrombamento ou mesmo de fechadura abrindo. Morava no 20º andar, ninguém poderia ter entrado pela janela.

- Quem é você?

Por mais estranha que essa visão parecesse, não tive como elaborar qualquer hipótese. Ela mesma respondeu:

- Sou a Morte.

Isso não me amedrontou. Continuei como estava há anos, sem sentir nada, nem certeza nem dúvida. Ela estava ali, era ela mesma, toda de branco, dentro do banheiro comigo. Fiz a única pergunta possível:

- Por que eu morri?

- Você não aguentou. Se jogou pela janela sem titubear.

Parou de falar por um momento, me encarando do mesmo jeito, sem mudar a entonação ou a postura vazias:

- O medo de altura era um repelente e um atrativo. Se lembra daquelas olhadas, calculando forças e alvos? Não teve nada disso. Foi de uma vez só, pela janela da sala.

Abri e fechei a boca três vezes antes de questionar. Alguma coisa me atrapalhava o raciocínio, o cérebro não funcionava bem - parecia ter se espalhado pelo chão em vários pedaços.

- Então como eu ainda estou aqui no banho?

- Você não está aqui realmente. Já foi. Resolvi deixar você se lavar mais uma vez antes de vir comigo.

As torneiras de água fria e quente me encararam. Ouvi um grito na rua. Então era verdade.

Assim como o meu corpo devia estar se esvaindo em sangue na calçada, ou em cima de um carro, as angústias fluíam com a água quente. Um alívio vinha preenchendo cada cavidade do meu corpo. Esmaguei para fora dos meus pulmões um milhão de litros de ar; apertei os olhos e não chorei, e, muito melhor, não senti aquela vontade estúpida de chorar sem ter lágrimas. Eu não viveria mais aquela sensação de tempo perdido, dinheiro gasto, vida desperdiçada. Como aquilo me fez bem.

De algum jeito, eu sabia que ela sabia tudo a respeito dos meus pensamentos. Eu não precisava explicar uma vírgula, mentir ou pensar em algo agradável para dizer. Estava nu, de pé à sua frente, tomado de tranquilidade como um recém-nascido depois da dor do parto. Sem aflições, pavores ou chiliques, nem euforia ou animação passageiras. Isso era melhor, muito melhor do que eu tinha imaginado.

Pareceu que tudo tinha valido a pena até ali. Que eu tinha nascido para aquilo, aquele desfecho trágico, se assim o considerar. Fez mais sentido que eu achava e encaixou perfeitamente com todo o resto da minha vida. Porque eu estava vivo até cair, um morto não se joga pela janela.

Passei a mão no vidro embaçado para poder enxergá-la melhor e encarar fundo os seus olhos. Precisava sair do box do chuveiro, me secar, colocar uma roupa limpa? Acompanharia a Morte fisicamente ou era só fechar os olhos e deixar o corpo desabar sobre os azulejos? Sirenes corriam e chegavam à cena, mas eu ainda me sentia ali de pé no banho.

Suas pupilas negras eram como dois buracos nos quais eu tropeçara de cabeça. Aumentaram de tamanho, logo extrapolaram o branco dos olhos e ultrapassaram os limites de seu rosto. As paredes e a louça branca do banheiro se fundiram com sua roupa cheia de luz, embaralhando a ideia de cômodo e pessoa como coisas separadas. As duas pupilas eram então um grande círculo, do tamanho da porta, e continuavam a me olhar e puxar para o fundo. Tornaram-se uma passagem, um portal, como preferir.

Passo após passo, passei para o lado de lá.

segunda-feira, setembro 03, 2018

Água de coco

Tinha acordado tranquila para mais um dia de ansiedade cotidiana. Porém, do banho à maquiagem, passando pela escolha de roupa e pelas notícias que tinha lido, tudo tinha contribuído para destruir o seu humor. O esforço para se arrumar e aparentar confiança era cada vez mais inútil. Nenhum batom vermelho tinha força suficiente para levantá-la, muito menos o par de cílios postiços que acenava.

Jogou os sapatos de salto no porta-malas. A mochila que tinha arrumado para o fim de semana no sítio ainda estava lá. Nem se deu ao trabalho de descarregá-la quando desistiu de seus planos fora da cidade na sexta-feira anterior.

Saiu da garagem infeliz. Sua supervisora ligou:

- Hoje a reunião é muito importante. Compre água de coco, por favor. O chefe está muito ocupado esses dias, e o seu tempo é muito importante. Ele adora água de coco.

Mais uma reunião estúpida. Ninguém perguntou se ela também precisava se hidratar.

Estacionou na vaga ao sol na padaria para comprar água de coco. A vaga ao lado era ocupada por um caminhão enorme. O anuncio na lataria chamava: “Faço carretos – Nordeste – Sudeste”. O código de área do telefone era 71.

Comprou as fichas no caixa e agradeceu à atendente de sotaque baiano. Voltou ao carro equilibrando a caixa com os cocos e se encarou no minúsculo espelhinho do quebra-sol.

Quem a olhava de volta era uma pessoa de olhos opacos. Depois de alguns segundos, os olhos brilharam de leve. Ligou o carro e liberou a vaga para outra pessoa.

Estava seguindo pelo caminho mais curto até o trabalho, mas com o pior trânsito. Era possível seguir para pegar o túnel, continuar na avenida, chegar ao prédio. Ou virar à direita.

Voltou à Marginal sem dar seta. Pegou o retorno, subiu a ponte. Quarenta minutos depois de muitas buzinadas e poluição, já não estava mais na cidade de São Paulo.

Analisando friamente sua situação, tinha três litros de água de coco, cinco oitavos de tanque, setecentos reais na conta, duzentos em papel, um cartão de crédito próximo do limite, uma pequena mala com dois biquínis, três regatas, dois shorts, um par de havaianas, duas calcinhas (três com a que vestia), o carregador de celular, três potes de protetor solar, um carro 1.0 bem sujo e muita vontade de fazer xixi. No banco de trás, um casaquinho leve que deixava ali para não ser apanhada desprevenida caso o tempo virasse. Não precisava de absolutamente mais nada para dirigir até Salvador.