terça-feira, novembro 27, 2018

Túnel

Vou tentar explicar o que vi acontecer com o meu irmão deprimido.

Eu estava sentado numa poltrona em seu quarto, lendo para passar o tempo e fingindo tomar conta dele à meia-luz do final de tarde. Depois de muitas e muitas horas dormindo, ele rolou na cama pela centésima vez para cobrir o rosto com o travesseiro. Acabou caindo no chão de cara.

Para quem esperava uma reação, um gemido de dor ou um suspiro de fracasso, não veio nada. Ele continuou do mesmo modo que caiu, braços junto do corpo, rosto para baixo. A queda foi seguida apenas pelo silêncio.

O corpo começou a se mover deitado pelo chão... Mas não de um jeito normal. Não estava serpentando ou rastejando. Não era como um filme de animação de massinha, com quadros em stop-motion. Não flutuava acima do chão, como o skate de ‘De Volta Para o Futuro’. Não se arrastava nem era carregado. Meu irmão mantinha uma velocidade constante e não emitia qualquer som.

Seguia para longe da cama. Fazia manobras para desviar de quinas de móveis, passou por debaixo das portas. Esteve em todos os cômodos da casa e ninguém deu bola. No máximo riram e levantaram os pés. Acredito que a melhor aproximação seria a de que boiava numa correnteza, sem os altos e baixos da força da água ou qualquer obstáculo do leito.

Eu e o cachorro da casa acompanhávamos aquela bizarrice alguns passos atrás, sem coragem de intervir. Não parecia real, mas estava acontecendo – ele estava em movimento sem se movimentar. Vimos seu corpo descer as escadas sem problemas, alcançar a garagem e passar por debaixo dos carros. Pareceu tomar algum impulso para ultrapassar o portão e... chegou à rua.

Então finalmente levantou da inércia. Saiu correndo sem olhar para trás.

terça-feira, novembro 06, 2018

Olho por olho

Para enxergar o que é bem pequeno e passa quase despercebido aos meus olhos, conto com uma lupa antiga e ensebada na mesa do meu escritório. Deixo-a deitada em cima de uma pilha e textos, protegendo-os do vento do ar condicionado e de quem acha que pode arrumá-los. Com ar antigo, ela funciona como peso de papel chique, um reminiscente de uma profissão que acabei de começar a escrever.

A lupa tem quase 15 centímetros em seu comprimento – 2 terços são a lente grossa, 1 terço é o cabo de madeira pintado de preto. Tem umas letras pequenas escritas na borda inferior do vidro, algo tão minúsculo que eu precisaria de uma outra lente para enxergar com propriedade. Na ponta do cabo, um protetor de borracha ou plástico, não sei bem de que material, eu insisto em cutucar com a unha quando não tenho inspiração pronta.

Em dias de bagunça no trabalho, a lupa some num cenário amplo que não representa apenas o jornalismo, mas também outros pedaços da minha vida desfocada; vira detalhe pequeno do meu tesão em ver as coisas com mais clareza, procurar sempre, até encontrar o ponto que faltava. Às vezes é difícil de achá-la na confusão de bolsa de ponta cabeça, caixa de lenço de papel, escova de dente e uma cartela de remédio quase acabando. Quando preciso de ordem, junto os papéis que eu li e enchi de marcadores coloridos e os arrumo nem muito na ponta, nem muito no centro da mesa. Deposito a lupa pesada no centro exato da primeira folha.

Ela não é muito prática, admito; é desajeitada de segurar, desproporcional entre a finalidade do peso do vidro e o final amadeirado. Os documentos de letras miúdas que lhe dariam algum trabalho são escassos, sempre posso crescer a tela do computador. Sem a firmeza de uma mão que sabe que ali no cantinho do papel, milimetricamente posicionado, há algo a ser visto, ela tomba entre os dedos e cai em cima do pé. O vidro sobrevive, mas os dedos amassados doem.

A lupa fica em cima da minha mesa como uma mensagem, não como um objeto para o meu dia-a-dia. Quando encaixo a lente num olho aberto e fecho o outro, fazendo careta para meus colegas, ela serve para que os outros me olhem desproporcional à coisa pequena que eu sou, parte da engrenagem da escrita muito maior – e para que eu enxergue os outros, tão grandes, e aumente os seus detalhes, menores circunstâncias, no esforço de entender todo o mundo à minha volta.

domingo, outubro 21, 2018

Listas importantes e desimportantes

Com uma ideia na cabeça – comparar a deturpação da imagem de mulheres históricas – e um prazo para entrega um pouco apertado, precisava de exemplos além da óbvia Cleópatra como grande ícone feminino. Queria consultar uma lista de mulheres conhecidas no senso comum, fáceis de lembrar, que foram incompreendidas por seus contemporâneos. Pesquisando no Google por "mulheres importantes na história", me decepcionei absurdamente com os conteúdos que encontrei e me motivei a escrever este texto. Nenhuma página que eu li se propôs a encerrar a discussão sobre quais são as mulheres mais importantes (dizem sempre que são muitas para entrarem na lista), mas possuem pontos em comum que são simbólicos.

Primeiro preciso dizer que a maioria das listas que eu encontrei foi feita em comemoração/homenagem ao dia da mulher – como se a importância dos feitos femininos devesse ser lembrada apenas durante um dia do ano. Nenhuma lista ultrapassava 30 nomes, sendo a maioria bem curta, com menos de 10. Mas vamos em frente que a situação só piora.

Algumas listas simplesmente elencam mulheres que foram as primeiras a desempenhar uma profissão comum aos homens em sua época: seus grandes feitos foram meramente conseguir trabalhar, incluir-se no mercado enfrentando a intolerância e a desconfiança, provando sua capacidade. Um homem que apenas trabalha, seja como atleta, médico, professor, cientista ou músico, está mudando o mundo? É claro que a quebra de padrões é importante ao abrir caminhos para diversas outras mulheres, mas a grande realização elencada nas listas está normalmente reestrita a esse fato. Eu esperava algo além disso, mas parece que deixamos de engatinhar em nossas conquistas há menos tempo do que eu imaginava. Outras listas ressaltam a “audácia, ganância e atrevimento” de mulheres ao disputar e negociar posições de poder. Essas características negativas desqualificam o pioneirismo como um desvio total da normalidade, despertado apenas em algumas poucas selecionadas.

Poucas listas detalham os feitos atingidos (descobertas, inovações, mudanças, conquistas, etc.), fatos anteriores e posteriores e suas biografias, e porque foram tão importantes para a história. A maioria compara a coragem de mulheres à de grandes homens, fisicamente falando – como se esta fosse uma característica masculina, estranha ao outro gênero, uma exceção. Nenhuma das mulheres lembradas tornou o mundo de alguma forma pior, mais injusto, menos bacana, etc. Todas são figuras benevolentes e contribuintes para o bem-estar mundial. Todas as listas apresentam uma foto de rosto ou de corpo de cada mulher, normalmente clicando o momento importante que a fez entrar para a lista.

Quase todas as mulheres agiram por/em companhia de/devido a/pela pressão de um homem, fosse ele o marido, pai, irmão, parceiro, etc. Ou seja, geralmente precisaram da influência de um homem para desenvolver suas habilidades, inseri-las no seu campo de atuação e dar-lhes o devido reconhecimento.

Pensei que estava sendo injusta e que minha pesquisa usava palavras muito simples em busca de resultados muito complexos – o subjetivo pelo objetivo. Decidi inverter a situação para testar essa hipótese.

Meu queixo caiu em 0,57 segundos, o tempo que o Google levou para realizar a pesquisa. Ao buscar por “homens importantes na história” ou “important men in history”, o termo homem/men é substituído por pessoa/figura. O gênero do ser humano de atuação tão importante deixa de ser relevante em função do que ele alcançou.

Desisti. Vamos com Cleópatra, a mulher, não o mito.

quarta-feira, outubro 10, 2018

Cristal

Hoje eu vou escrever como se fossemos sair hoje à noite. O que você prefere: quer que eu passe aí ou vem me buscar? Eu vou te buscar e vou no carro da minha mãe pra você escutar o ronco do motor. Passei perfume e hidratante, estou de lingerie que combina e vou cantando a plenos pulmões. Eu quero que você me beije só no rosto, mas esse pensamento desaparece quando te vejo entrando no carro. Quer mudar de música? Quer ligar o ar? Eu sei que não porque gostamos das mesmas músicas e do mesmo vento no rosto. Não quero que você saiba aonde vamos: vou por no GPS o endereço do lado oposto da rua, pra que você me indique o caminho sem saber o destino final.

Entrego as chaves para o manobrista. Se você não beber e quiser experimentar, pode dirigir na volta. Estou de salto e vestido, você de camisa, jeans e suas botas do Chico Bento. Ok, estou brincando, elas são legais.

A espera por uma mísera mesa para dois vai se estender por anos-luz, mas não tem problema. Vamos sentar no bar e conversar sobre família, amigos, cachorros e faculdades. Nada de nós.

Que delícia ser de uma felicidade transbordante, daquelas que não tem como não olhar, ainda melhor do que o aperitivo que pedimos. Seu carinho em mim é natural e não adianta resistir. Estou de olho em você, em cada detalhe e em tudo mais. Vamos dividir a pizza e você vai pedir uma brotinho doce depois.

Pode deixar a mão no meu joelho, no meu ombro, no meu pescoço, pode pegar no meu tornozelo. Eu vou fingir que a corrida de hoje cedo me deixou doída e dizer para você apertar a minha panturrilha. Vamos pedir mais uma água sem gás e rachar a conta. Comentar de alguém em uma mesa próxima, falar qualquer bobagem sobre uma pessoa que passou no salão; vou pedir para você repetir o que disse no meu ouvido enquanto eu penso em uma resposta engraçada.

Vou pagar o valet e vamos decidir para onde vamos. Espero que você nem se dê ao trabalho de sugerir um cinema. Se tiver vaga na garagem do seu pai, estamos do lado e vamos direto; foda-se que eu não trouxe nem uma caixinha para colocar as minhas lentes de contato. Se a opção pelo Zona Azul de amanhã cedo não permitir, ainda melhor: te deixo na sua casa para você conseguir um carro emprestado e vamos num pega até a casa da minha mãe. Você vai chegar primeiro na força e não na astúcia, mas tudo bem. Pode parar na porta enquanto eu manobro na garagem, eu vou entrar para pegar alguma coisa, uma mala que já estava meio arrumada. O meu cachorro vai te receber pulando e você vai conversar com o pessoal de casa, bebendo água, enquanto eu ouço o papo do meu quarto.

Bora. Você levanta as sobrancelhas para saber se eu peguei tudo. Talvez eu já tenha abandonado o salto e vá para o seu carro de Havaianas. Talvez você não se dê ao trabalho de ligar o GPS porque quer chegar logo. Vou segurando a sua perna e me sentindo a mulher mais sortuda do mundo por contar com você do meu lado. Nessa noite específica e em todas as outras.

É um caminho rápido e conhecido para voltar à sua casa. Por que o controle do portão nunca funciona de primeira? Pega as chaves no painel? Leva a minha bolsa? Chama o elevador?

Vou entrar pisando leve para não acordar ninguém nos outros quartos; você diz que não preciso me preocupar. Se eu encasquetar que quero ver televisão, vou te fazer mudar a mesa, o monitor, o videogame e os milhões de cabos para a frente da cama. Não vou até a cozinha para pegar dois copos de água, não adianta insistir. Quero aproveitar um momento sem você no quarto para deixar tudo no jeito e me espreguiçar na sua cama.

Tranca a porta, apaga a luz. Já que isso é tudo imaginação, vou deixar ligado um abajur que nem existe.

Eu vou fingir que esqueci o que acontece depois. Você vai ter que me lembrar nos mínimos detalhes quando me encontrar de novo. Por... favor?

domingo, setembro 16, 2018

Eu passo

Eu estava no box deixando a água quente do chuveiro escorrer pelas minhas costas. Mãos ora no rosto, ora apoiando na parede. Eu continuava tão desanimado e desmotivado como em qualquer outro dia e a minha tristeza tinha tradução física: uma dor no ombro que não ia embora por nada. Molhado da cabeça aos pés, eu simulava um lugar aconchegante para sofrer. Sem sucesso.

Olhei para o lado e enxerguei, depois do vidro e através do vapor, uma mulher encostada na porta. Me olhava sem expressão.

O que eu deveria pensar? Eu tinha trancado a porta do apartamento, a do quarto, a do banheiro e se pudesse também teria passado chave na do box. Ninguém tinha nenhuma cópia. Eu não tinha ouvido nenhum barulho de arrombamento ou mesmo de fechadura abrindo. Morava no 20º andar, ninguém poderia ter entrado pela janela.

- Quem é você?

Por mais estranha que essa visão parecesse, não tive como elaborar qualquer hipótese. Ela mesma respondeu:

- Sou a Morte.

Isso não me amedrontou. Continuei como estava há anos, sem sentir nada, nem certeza nem dúvida. Ela estava ali, era ela mesma, toda de branco, dentro do banheiro comigo. Fiz a única pergunta possível:

- Por que eu morri?

- Você não aguentou. Se jogou pela janela sem titubear.

Parou de falar por um momento, me encarando do mesmo jeito, sem mudar a entonação ou a postura vazias:

- O medo de altura era um repelente e um atrativo. Se lembra daquelas olhadas, calculando forças e alvos? Não teve nada disso. Foi de uma vez só, pela janela da sala.

Abri e fechei a boca três vezes antes de questionar. Alguma coisa me atrapalhava o raciocínio, o cérebro não funcionava bem - parecia ter se espalhado pelo chão em vários pedaços.

- Então como eu ainda estou aqui no banho?

- Você não está aqui realmente. Já foi. Resolvi deixar você se lavar mais uma vez antes de vir comigo.

As torneiras de água fria e quente me encararam. Ouvi um grito na rua. Então era verdade.

Assim como o meu corpo devia estar se esvaindo em sangue na calçada, ou em cima de um carro, as angústias fluíam com a água quente. Um alívio vinha preenchendo cada cavidade do meu corpo. Esmaguei para fora dos meus pulmões um milhão de litros de ar; apertei os olhos e não chorei, e, muito melhor, não senti aquela vontade estúpida de chorar sem ter lágrimas. Eu não viveria mais aquela sensação de tempo perdido, dinheiro gasto, vida desperdiçada. Como aquilo me fez bem.

De algum jeito, eu sabia que ela sabia tudo a respeito dos meus pensamentos. Eu não precisava explicar uma vírgula, mentir ou pensar em algo agradável para dizer. Estava nu, de pé à sua frente, tomado de tranquilidade como um recém-nascido depois da dor do parto. Sem aflições, pavores ou chiliques, nem euforia ou animação passageiras. Isso era melhor, muito melhor do que eu tinha imaginado.

Pareceu que tudo tinha valido a pena até ali. Que eu tinha nascido para aquilo, aquele desfecho trágico, se assim o considerar. Fez mais sentido que eu achava e encaixou perfeitamente com todo o resto da minha vida. Porque eu estava vivo até cair, um morto não se joga pela janela.

Passei a mão no vidro embaçado para poder enxergá-la melhor e encarar fundo os seus olhos. Precisava sair do box do chuveiro, me secar, colocar uma roupa limpa? Acompanharia a Morte fisicamente ou era só fechar os olhos e deixar o corpo desabar sobre os azulejos? Sirenes corriam e chegavam à cena, mas eu ainda me sentia ali de pé no banho.

Suas pupilas negras eram como dois buracos nos quais eu tropeçara de cabeça. Aumentaram de tamanho, logo extrapolaram o branco dos olhos e ultrapassaram os limites de seu rosto. As paredes e a louça branca do banheiro se fundiram com sua roupa cheia de luz, embaralhando a ideia de cômodo e pessoa como coisas separadas. As duas pupilas eram então um grande círculo, do tamanho da porta, e continuavam a me olhar e puxar para o fundo. Tornaram-se uma passagem, um portal, como preferir.

Passo após passo, passei para o lado de lá.

segunda-feira, setembro 03, 2018

Água de coco

Tinha acordado tranquila para mais um dia de ansiedade cotidiana. Porém, do banho à maquiagem, passando pela escolha de roupa e pelas notícias que tinha lido, tudo tinha contribuído para destruir o seu humor. O esforço para se arrumar e aparentar confiança era cada vez mais inútil. Nenhum batom vermelho tinha força suficiente para levantá-la, muito menos o par de cílios postiços que acenava.

Jogou os sapatos de salto no porta-malas. A mochila que tinha arrumado para o fim de semana no sítio ainda estava lá. Nem se deu ao trabalho de descarregá-la quando desistiu de seus planos fora da cidade na sexta-feira anterior.

Saiu da garagem infeliz. Sua supervisora ligou:

- Hoje a reunião é muito importante. Compre água de coco, por favor. O chefe está muito ocupado esses dias, e o seu tempo é muito importante. Ele adora água de coco.

Mais uma reunião estúpida. Ninguém perguntou se ela também precisava se hidratar.

Estacionou na vaga ao sol na padaria para comprar água de coco. A vaga ao lado era ocupada por um caminhão enorme. O anuncio na lataria chamava: “Faço carretos – Nordeste – Sudeste”. O código de área do telefone era 71.

Comprou as fichas no caixa e agradeceu à atendente de sotaque baiano. Voltou ao carro equilibrando a caixa com os cocos e se encarou no minúsculo espelhinho do quebra-sol.

Quem a olhava de volta era uma pessoa de olhos opacos. Depois de alguns segundos, os olhos brilharam de leve. Ligou o carro e liberou a vaga para outra pessoa.

Estava seguindo pelo caminho mais curto até o trabalho, mas com o pior trânsito. Era possível seguir para pegar o túnel, continuar na avenida, chegar ao prédio. Ou virar à direita.

Voltou à Marginal sem dar seta. Pegou o retorno, subiu a ponte. Quarenta minutos depois de muitas buzinadas e poluição, já não estava mais na cidade de São Paulo.

Analisando friamente sua situação, tinha três litros de água de coco, cinco oitavos de tanque, setecentos reais na conta, duzentos em papel, um cartão de crédito próximo do limite, uma pequena mala com dois biquínis, três regatas, dois shorts, um par de havaianas, duas calcinhas (três com a que vestia), o carregador de celular, três potes de protetor solar, um carro 1.0 bem sujo e muita vontade de fazer xixi. No banco de trás, um casaquinho leve que deixava ali para não ser apanhada desprevenida caso o tempo virasse. Não precisava de absolutamente mais nada para dirigir até Salvador.

sexta-feira, agosto 24, 2018

Pelo contrário

Essa mulher tem membros, tronco e cabeça. Rosto cheio, pouca idade, sorriso fácil. Fora as obviedades físicas citadas acima, eu não tenho material para encará-la como um ser humano completo. Não sei nada a seu respeito, jamais troquei uma única palavra com ela, é um indivíduo que eu desconheço. Tudo o que eu deduzo e duvido sobre a sua personalidade está relacionado com a minha observação cuidadosa, diária e silenciosa do seu cabelo.

Ainda que eu não tivesse destruído meus próprios fios e desde então me consumisse em uma inveja ácida das cabeleiras fartas que me cercam, o cabelo dessa mulher pede por uma vista atenta. Em meses de olhares enviesados, disfarçados por uma aura de desinteresse e coincidência ao ser notada, construí uma sincera reverência, mantida até hoje como particular.

Ela tem os fios grossos, cheios, escuros, lisos, que chegam até a cintura e com luzes nas pontas. Tirando esses centímetros de tintura ao seu final, não há nada em seu formato ou raiz nascente que motive questionamentos quanto à sua virgindade, inocente de alisamento ou outro método de coloração. O corte é reto, pouco criativo; na linha da testa, alguns fios mais finos e curtos despontam; na altura das orelhas, duas mechas servem como moldura ao rosto. O brilho sincero do cabelo reflete saúde, beleza, força e boa genética. Além da apresentação típica, solto e escorrido pelos ombros ou na mesa atrás de sua cadeira, ela também costuma prendê-lo em um nó. Para construir a arquitetura onde os fios suportam os próprios fios, ela leva cinco minutos a atar com calma, mas determinada, todas as pontas.

Mais do que contemplar o espetáculo da natureza em queratina, o qual presumo que seja acompanhado por hábitos saudáveis de limpeza e hidratação, eu me surpreendo com a regularidade do cabelo dessa mulher. Mesmo diante das intempéries do tempo ou da displicência de um dia de preguiça, os fios estão sempre brilhantes, arrumados, impecáveis. Não houve um único dia em que eu tenha pontuado mentalmente qualquer leve traço de oleosidade ou secura, ponta dupla ou frizz.

Para domar o ódio que meus folículos capilares nutrem por mim, bombardeando óleo a todo instante, optei pelo contrário dos pelos que essa mulher mantém na cabeça. Não tenho o que é preciso para manter, ao longo dos dias e meses, essa realidade longa e lisa, que alcança os outros antes de qualquer coisa e demonstra força por si só. Me resta apenas a admiração pelo movimento, o colocar atrás da orelha e o enrolar do comprimento nos dedos. À distância, eu não teço elogios e fico sem saber o perfume do seu shampoo.

quarta-feira, julho 25, 2018

Convergência

Um dia talvez eu te perdoe por você ter passado tão perto de mim e nunca ter me encontrado.

Eu vou perdoar todos os nossos amigos em comum que não pensaram em nos apresentar antes.

Todo o destino que me pôs a metros de você e não me fez olhar pra trás, por cima do ombro.

Cada vez em que eu relei na ideia de te conhecer, mas escolhi outros caminhos.

Quero poder perdoar todos os pontos em comum entre a gente, incapazes de fazer faísca por conta própria.

As coincidências que nos afastavam e nos aproximavam, um ioiô de chiclete.

Sem reclamar por ter provavelmente andado ao seu lado, invisível e insensível, em um lugar qualquer.

Será que, nem uma única vez, eu não tenha te olhado por um mísero segundo?

Vou parar de correr atrás de um culpado para eu não ter te visto antes, bem na minha frente.

Ninguém tem mais culpa nisso tudo do que eu.

E pensar que se eu tivesse te procurado um pouco mais, um pouco antes... Ah!

Que horrível seria. Jamais tão incrível.

Eu era incapaz de sonhar assim.

quinta-feira, junho 07, 2018

A vingança é um prato que se come congelado

O celular não parava de apitar e ele continuava a dormir pesado. Ela alcançou a tela em meio aos lençóis e se assustou com a claridade. De sua miopia, só conseguiu ver um mesmo nome feminino repetido diversas vezes, titulando emojis, pontos de exclamação e reticências. Acompanhados de palavras de baixo calão bem sugestivas.

Decidiu desbloquear o aparelho. Ao seguir naquela conversa, com o coração explodindo, ela queria ser pega no pulo e apanhar, ouvir gritos até ficar surda e não ter respostas para legitimar o ciúme. Mas ele permaneceu em um ronco baixo e ela continuou lendo. Voltava na leitura um dia, uma semana, doze dias, sem que o assunto esfriasse.

A ardência da conversa estimulou a quentura de seu sangue. Do coração quebrado nasceram imensos chifres, a encher seus olhos de lágrimas e ódio. Mal deu tempo de pegar as roupas espalhadas no chão e tirar a calcinha do avesso para vesti-la. A malha e a blusinha que ficavam, respectivamente, em cima e embaixo da camisa, se perderam na pressa.

Sem respirar, fechou a porta do quarto e a do apartamento. Desceu à rua e atravessou um, dois, três quarteirões, tremendo nos saltos até a padaria. A certeza que a nutria nos últimos meses se mostrara insípida e o vazio se transportava do peito ao estômago. Precisava preenchê-lo por segurança, não por apetite. Uma opção honesta de comida destoaria da situação.

Pediu duas bolas de sorvete de chocolate para congelar os ânimos. Naquela hora da manhã, a casquinha gelada poderia tomar o tempo que precisasse para ser saboreada. Do sólido para o líquido a cada lambida, como todos os sabores a derreter e todos os pingos que mancharam suas roupas, este não seria o final. Aquilo não era a sobremesa.

Era só o aperitivo.

quinta-feira, abril 12, 2018

Quinta-feira

Esta é uma sala de silêncio e risadinhas. Ninguém consegue ir além do próprio silêncio e ninguém sabe fazer mais do que as próprias risadinhas. É tão vazio e tão odioso. São as minhas companheiras hienas, que mal aproveitam a carcaça do que os professores jogam para seu público.

Faz um frio dos diabos no fundo da sala e não há nenhum som audível além do ar condicionado. São quatro dúzias de estudantes reunidos, metade olhando para frente de forma contínua. O resto, eu incluída, olha para baixo, para os lados ou vira os olhos para dentro da órbita ocular, ignorando o que se passa alguns metros à frente.

O professor pede um voluntário para algum exercício rápido. Para variar, ninguém concorda em ser exposto. Ele repete as instruções, eu continuo sem entender, mas peço para ter meu texto analisado.

Ninguém aqui me conhece. Ninguém sabe de onde eu venho. Gostaria muito de uma vez estar no centro da roda para ser julgada, apedrejada, aplaudida, cuspida. Estou há muito tempo em salas de aula e qualquer vergonha que eu tenha de aparecer nesse ambiente controlado e asséptico, tento sempre reduzir a zero.

Ele com certeza pensou bastante em como reproduzir um acontecimento, a partir do qual eu deveria escrever uma única lauda. Tem o seu script de abrir e fechar a porta para realizar algo impactante; e é interrompido.

Entra na sala o espécime masculino mais maravilhoso do mundo. Ele tem os cabelos loiros, as mãos suaves, o queixo forte. Além do atraso notável, demonstra segurança e carrega consigo os cabelos mais lindos que eu já vi na minha vida. Eu não consigo desviar o olhar enquanto ele se esgueira pelas cadeiras – uma fileira de garotas pouco solícitas evita lhe dar licença – e chega a seu destino final, um assento nos fundos. Como eu ia prestar atenção a qualquer coisa que se passava em qualquer outro lugar do mundo?

O professor avisa que pronto, era isso que ele queria fazer. Era isso que ele queria demonstrar – só isso, uma coisa qualquer que eu deixei passar, mas estou com o coração acelerado e irremediavelmente de ponta cabeça. E tenho vinte minutos para escrever sobre isso.