sábado, junho 19, 2010

O que nem uma píton consegue devorar

Eu subi as escadas devagar. Nem acreditei! Fugi do tédio, da televisão que não me oferece absolutamente nada, do mal que o computador me faz quando me aprisiona em sua tela que pisca, do quão incontrolavelmente pirada eu me sinto com tudo isso. E sorrateiramente corri pelos degraus. Infantil, com medo dos monstros, até não poder mais!

Ainda bem que ninguém questionou uma vírgula e o quarto já estava escuro. Foi só tirar os sapatos e esperar, ainda sentada sobre o colchão, por algum sinal divino que pudesse me tirar da insanidade já mencionada. E porque eu queria me livrar tanto dela, é possível perceber quando eu finjo que me deito em paz.

O medinho ao me esconder da realidade na trincheira de cobertores (e o frio dos lençóis, anda mais perceptível quando você já deitou em lençóis quentinhos) não surpreendeu, e como espero desses temores me recuperar, para um dia casar sem loucuras aparentes que seriam motivos claros para um divórcio, não verifiquei assustada embaixo da cama para me garantir contra qualquer píton birmanesa. Até pensei: e se houvesse uma arrastando-se gorda perto de mim, seria ela o ser (ou a causadora da sensação) que me libertaria desse aparente delírio?

Eu teria que me unir a alguma seita maluca? Simular uma ficção em que o pensamento não fosse arma nem escudo? Largar dessa de querer descobrir as verdades, as mentiras e o que ninguém imagina que ainda pode ser descoberto? Ou algo que fosse de fora pra dentro; encher de símbolos a pele toda que já carrega pintas e cicatrizes em abundância? Filar um comprimido dos remédios da prateleira tarja preta de papai? O que me faria ser feliz sem amarras, em liberdade, não o contrário? VOCÊ?

terça-feira, junho 15, 2010

Capítulo 2

Nunca o terno tinha estado tão apertado e cheirando tanto a cigarro. Os óculos escuros modelo aviador cobriam os olhos vermelhos e as olheiras fundas; o dia estava com um espesso nevoeiro, e ele não enxergava um passo a sua frente, muito menos o céu acima. O sapato esquerdo estava desamarrado, mas ele o deixava assim, tendo medo de abaixar-se e acabar jogando-se no chão, sem forças nem vontade para levantar.

Estava no norte da Inglaterra, na minúscula cidade natal de Glória (não havia mais sentido em chamá-la de Sra. Charles), sua companheira há quase dez anos. Amigos, parentes, conhecidos, todos presentes. Imensamente tristes, mas não sentiam a aflição do Sr. Charles. Algumas mulheres ainda derramavam lágrimas escuras de maquiagem, enxugadas com lenços cinza de seda. Os homens davam apertos de mão esmagadores e tapinhas nas costas. Não diziam nada.

Zelar demais por Glória, abafá-la em suas vontades e desejos, piorou o alcoolismo que ela herdara do pai. Após a última bebedeira, uma das mais agressivas, ela bateu o carro contra um poste em Berlim. Com tanta velocidade que a lataria fora reduzida a uma escultura mórbida. Era agora uma pobre mulher envolvida em lírios num caixão sufocante.

Mas o pobre jovem bilionário teve que agüentar o triste velório de sua amada mulher, sem poder dizer o que sentia para ninguém.

quinta-feira, junho 03, 2010

Controlável formosura

“Seu cabelo continha todos os raios de sol do mundo: brilhava a ponto de ofuscar os olhos de quem o contemplava. Ia até o meio de suas costas em ondas delicadas. Balançava suavemente com o seu andar elegante, e mesmo quando estava parada e pensativa, uma leve brisa a acompanhava e misturava seus fios de ouro.

“Os olhos tinham todas as cores do arco-íris, e até mais algumas. Eram hipnotizadores, grandes e brilhantes. Mil borboletas batiam suas asas dentro dele, num vôo que cintilava. Quanto mais feliz ela se sentia, mais bonito seu olhar ficava: era capaz de aquecer corações já antigos demais.


“Sua boca era belíssima: os lábios carnudos e vermelhos como uma maçã abriam-se sempre num sorriso encantador e faziam explodir emoções quando beijavam os de seu amado.”


-Não, tire essa parte do beijo. – ela tragou seu cigarro.

“Sua boca era belíssima: os lábios carnudos e vermelhos como uma maçã abriam-se sempre num sorriso encantador e escondiam dentes perolados e felizes como os de uma criança.”

-Hmpf. Isso aí. – soltou a fumaça pelo nariz.

“Os pés que tinham andado tanto e descoberto tantos caminhos eram macios, pequeninos. As mãos gostavam de calor humano e proximidade: eram hábeis e acolhedoras; igualmente pequeninas.

“O corpo esbelto, de pele suave e quente, movimentava-se sempre no ritmo que ninguém determinava. Ela sorria e fechava os olhos para aproveitar melhor a música. Sua vivacidade traduzia-se quando ela dançava: de todas as suas habilidades, era com aquela que mais se sentia plena e dona de si.

“Suas emoções eram sempre bem definidas: muito precisas e extremamente envolventes. A força e energia que tinha vinha do amor que nutria pela vida sempre generosa.

“Ela vivia pois o novo a cada dia era sua razão de existência: a felicidade de ter um passado, um presente, e um futuro, um ontem, um hoje, e um amanhã, mal cabia em seu peito quando ela se descobria viva a cada segundo.
“Seu conjunto era especial, incomparável. Ela, sendo ela, era a mulher mais bela deste planeta.

“Até sua respiração era linda: meu Deus, como pude esquecer de dizer isso? Devo ter deixado de falar vários outros detalhes também. Há tanto para falar... Um infinito de perfeições...”

Paula bateu o cigarro no cinzeiro de pedra. À sua frente estava um jovem sentado numa cadeira preta junto a uma mesa onde havia uma negra máquina de escrever. Seu cabelo era ralo a ponto de poder se ver o couro cabeludo rosa. Ele era magricelo e curvado. Esse garoto olhava as teclas gastas e passava os dedos com unhas longas por elas suavemente, como se acariciasse o rosto de uma moça, coisa que nunca havia feito. Seus pensamentos não estavam focados em nada: ele era uma pessoa ausente, não importava a situação.

Ela estava impaciente como em todas as manhãs. Batia insistentemente o salto fino do sapato com estampa de onça no chão, espalhando ecos pela sala. O cigarro que fumava não tinha nicotina alguma, porém ainda lhe dava o mesmo prazer. Alguns achavam que aquela medida saudável do governo não adiantava nada, pois ainda era possível encontrar cigarros antigos e não-mofados à venda, a algumas esquinas dali. Como funcionária do governo, ela seguia a maioria das regras, pelo menos enquanto houvesse alguém que pudesse a flagar.

Um segurança entrou na sala e tirou com delicadeza o papel com letras ainda molhadas da máquina. Ela conhecia-o bem, mas sempre o olhava cuidadosamente de cima a baixo. Desta vez ele portava um fuzil e tinha munições presas às panturrilhas, onde normalmente se colocaria uma faca de caça. Ele era sereno, bonzinho até demais, apesar de nunca se importar demais com os dois. Era um segurança “Nota 50”, como dizia o novo slogan do presidente.

Paula era poetisa. Apesar de seu jeito ameaçador, briguento, lidava com palavras com uma suavidade incompreensível; as tratava como personagens reais. E, por azar, acostumou-se a tratar personagens reais como palavras (principalmente as mais banais e ordinárias). Ao mesmo tempo era importante e desnecessária ao governo. Porém como já estava alto o número de desocupados pelas ruas e bares, a mantiveram ali.

Essa era mais uma descrição de padrão de beleza ultrapassado que ela fazia, para que o governo não o repetisse. Tinha sido comum em 2025, 2030, por aí, quando o infinito culto ao brilho e a natureza havia quase acabado com o mundo. A moda agora ainda não tinha sido definida, mas seria algo rebelde, vermelho, belo, forte e rasgado. Provavelmente algumas drogas seriam liberadas e o governo libertaria as bandas de rock (estilo quase totalmente esquecido) da prisão.

Paula em particular preferia não pensar em nada. Levava o que devia lhe importar como se nada tivesse a tocado. Ao ritmo da vida, um brinde, ela dizia quando chegava ao seu apartamento e o encontrava lotado de amigos próximos que traziam cerveja escondida em frascos de sabão em pó.