domingo, janeiro 04, 2015

Camelo-cobra

Eu estava tentando chegar em casa tomando o metrô, e por duas vezes estava na metade do caminho quando lembrei que tinha esquecido algo e tive que voltar. Agora estava com uma mochila cheia nas costas, uma mala vazia na mão direita, uma bolsa no ombro e várias sacolas na outra mão.

Parada em frente à catraca, procurei em minha bolsa por um tíquete. Tinha cartelas e cartelas de passagens comigo, mas não achava nenhuma. Quando finalmente encontrei, levantei os olhos e vi dois policiais me encarando do outro lado. Desviei o olhar, apreensiva, e enfiei o bilhete na catraca.

Tentei forçar minha entrada, mas com tantas bagagens, era uma tarefa impossível. A catraca em si diminuía de largura, até sobrar o espaço de uma mão para que eu passasse. Ouvi uma voz grossa: ”por favor, nos acompanhe”.

Os policiais me indicaram a entrada auxiliar do metrô, e disseram que o caminho seria seguro. Era uma rua larga em subida, com o chão cor de areia, casinhas brancas empilhadas dos dois lados. Eu andava no exato meio da via. Velhos com os ouvidos, os olhos e as unhas sangrando batiam a cabeça contra os muros e gritavam. Uma velha tentou me agarrar, e eu a empurrei com força.

Cheguei a uma escada que levava a um quintal subterrâneo. deixei ali minhas bagagens, que não me seriam mais úteis. Desci, segurando no corrimão frio e úmido, e encontrei minha nova prisão.

O chão era vermelho e as paredes eram brancas. Em uma delas, havia portas em toda a sua extensão. Estava tudo muito sujo, com folhas caídas, e não havia uma iluminação decente.

Meus novos companheiros: um garoto gordinho de roupas pretas e óculos redondos; uma lagosta branca com uma ridícula peruca loira de tranças extremamente artificial e olhos azuis grudados em seu peitoral; um peixe verde mirradinho, de óculos escuros e voz fina; minha amiga Pamella, absolutamente mal-tratada; e uma ratazana enorme com o pelo falhado.

A ratazana era a interna mais antiga. Ela me apresentou todos os métodos de tortura que poderiam ser feitos caso eu não me comportasse. Enfiar em mim um ferro ardente no formato de um pinguim, deixar uma chinchila comer meu intestino por três horas, privações variadas e ser mantida por tempo indeterminado no escuro eram apenas alguns exemplos. Minha amiga sorria de leve a cada menção. Com certeza havia passado por todas as torturas em suas tentativas de fuga. Como havia conseguido sobreviver?

Eu estava arrepiada. Sou extremamente medrosa, e meu maior pânico é sentir dor. A cada descrição, eu gritava por dentro. Tentei me manter impassível, mas sei que minha voz me denunciou, e ao final das descrições soltei um débil: “vou me comportar direitinho”.

Algum tempo passou, todos ficamos em silêncio. Um de nós disse que estava com fome (ainda que todos estivessem famélicos, especialmente eu). Um enorme barulho como o ronco de um estômago, vindo de uma porta de vidro, a primeira da parede das portas, me assustou. Eu fiquei paralisada, sem coragem nem de olhar para trás, mas todos se levantaram rápido e me chamaram para ver quem estava trazendo a nossa comida.

Saindo do ralo, uma enorme cabeça de camelo seguida por um corpo peludo de cobra. O animal debatia-se contra as paredes daquele pequeno quarto enquanto todos assistiam com água na boca. Ele puxou com a cauda quatro bacias quadradas vindas pelo encanamento. Nelas havia arroz, feijão, frango frito bem branquinho e milho. Aquele milho provavelmente era alimento dos frangos antes de mortos. Eu não conseguia sentir nada além do meu medo.

A lagosta abriu a porta e todos entramos para nos servir. O camelo-cobra deslizava seus últimos metros de volta ao ralo. A ratazana pegou de um armário três pratos, minha amiga Pamella pegou o seu e eu peguei o restante.

Me servi de frango e milho, tremendo de medo por não pegar arroz e feijão, por talvez pegar comida demais e por minha fome já ter passado. A ratazana serviu pratos cheios, quase transbordando, e minha amiga Pamella pegou um pouquinho de cada.

Ao sentarmos para comer, uma sirene tocou. Estávamos em cinco, e o peixe de óculos não estava entre nós.

Todos largaram os pratos, com os rostos fechados, e subiram as escadas. Eu os segui, aflita, com pavor do nosso destino e sem entender como o peixe de óculos poderia ter desaparecido se estava conosco menos de quinze minutos antes. A culpa seria de todos nós ou só minha?

Uma multidão de policiais nos cercou. Nos vasculharam, empurraram e machucaram. Não tocaram no menino gordinho, que suava verde.

O policial mais velho tirou os óculos do menino e colocou nele um outro par de óculos redondos, amassados e sujos. O menino piscou e recuou, estranho àquelas lentes. Num estalar de dedos do policial, o menino desapareceu e um ser caiu entre as roupas pretas que restaram.

Um segundo policial puxou a camisa caída e encontrou enrolado na calça... um peixe mirradinho.