sábado, junho 19, 2021

Carta à miserável

 Para que você leia quando tiver algo de amargo cobrindo o seu corpo

Você passou por anos de negação. Não vivia, não tinha alegria. Foi uma condição mental que te impediu de viver como os outros. Que encerrou dentro da sua cabeça ideias que nem nasceram e te atrapalharam o sono, todos esses anos.

A culpa não foi sua. Nem de quem te gerou. Não adianta pensar no ‘e se’ você tivesse se tratado antes. Como teria sido se os encontros tivessem se alinhado mais cedo?

É difícil aceitar que essas coisas levam tempo. Tempo para notar que se é diferente. Tempo de pesquisar o que pode estar errado. Tempo para se acostumar a viver assim. Tempo de fingir, de mascarar e de se afastar.

E depois, o período de acabar com isso, porque isso não é vida. Mas foi assustador demais, e você levantou uma única bandeira branca, uma vez: eu preciso de ajuda.

E vem, enfim, o tempo de tentar tratar, que dura anos. Uma linha escrita a muitas canetas, em folhas de papel não lineares; esse é o desenho da sua nova vida. Mas agora é uma vida.

Não sei a partir de quando ela se tornou uma vida, já que tanta coisa acabou com você nesse meio tempo. E ainda assim, as manhãs foram menos piores do que você imaginou.

Talvez você tenha entrado num platô de episódios de desespero e alegria. Que bom, melhor do que só piorar ou não saber o que fazer quando tiver um tropeço. E nesse ritmo, que é o mais funcional que você já teve, você pode começar a planejar. Porque tem consciência de lugares diferentes do seu.

Traçar uma risca no chão: é para lá que eu quero pular. E dar um milhão de passos para trás. E aguardar. E, lógico, trabalhar para isso, coisa que você nunca fez.

Você não sabe exatamente como tocar essa parte. Nunca se esforçou por algo que estava fora de seu alcance (teve aquela e outra vez, mas nem se compara. Você nunca persistiu por si mesma).

Nessa nova etapa, você lidará com sentimentos ruins ao encarar os outros, no reflexo do espelho, no fundo das pupilas, no filtro que recobre a foto. Precisará engolir as palavras e sorrir o que nem sempre sente. O objetivo tem que ser maior, porque ele é seu e ninguém poderá fazê-lo por você.

Eu pouco posso te aconselhar sobre isso, porque sou você no passado, não vivi nada disso também. Só posso pedir que, quando chegar esse momento de desencontro com o que você achou que era, abra essa carta.

Esse é um lembrete:

Não invente que a esperança é burra.

Não confunda ambição com inveja.

Não troque orgulho por arrogância.

E não se faça de miserável. Você não tem o direito.

A miséria é daqueles que não podem sonhar. Agora você pode. Só não se acostumou a isso ainda.