terça-feira, dezembro 31, 2019

Mãos ao alto

Estou guardando uma lesão no polegar direito. É uma dor de segurar qualquer coisa, um lápis, mouse, escova de cabelo. Se a mão está em repouso, aberta, tudo bem. Qualquer movimento e eu agarro a dor no ar, sem falta.

Eu sei que tem sim algo trincado nos ossinhos, algo que não vai se arrumar sem a devida imobilização. Já decidi que quando eu precisar de descanso, quando não der conta nem de pedir as contas, vou fugir para o pronto-socorro no horário de pico com o laptop debaixo do braço. O tempo de espera para ser atendida e examinada servirá para me trazer paz.

De repente, quando achei que a vida tinha se tornado realmente intolerável, e a necessidade de aguardar o atendimento seria impossível de ignorar, a dor pulou de uma mão para a outra. Da destra necessária, imprescindível, fugiu para a canhota inútil, boba. E agora?

Engessar a outra mão não funciona como desculpa para abdicar do dia a dia profissional, e deve me prejudicar apenas 50% em âmbito privado: lavar o cabelo, usar talheres, dirigir, perderei a independência sem perder a utilidade. E os meus chefes com isso? Contanto que a minha mão apta esteja disponível, pode vir só ela mesma, serrada na altura do pulso, para discar o telefone, copiar um documento, arrumar as gavetas. Todo o resto em dor, quebrado, destruído, não importa; basta que a ferramenta de trabalho tenha vontade de corresponder ao script combinado.

Desapaixonada

Fiz uma piada sobre ele para a minha mãe e ele me empurrou no estacionamento do supermercado. Pediu desculpas quando eu reclamei.

Apontei um erro no trabalho que ele estava fazendo com um tom zombeteiro, tomei um dedo na cara. Sem nenhuma necessidade de ser enquadrada, tive que levantar a voz para dizer que aquilo não era certo. Ele aquietou.

Trouxe o remédio que ele não queria e ele jogou o cobertor longe. Tomou sem me olhar e virou para dormir. Falou um obrigado bem seco.

Por duas vezes eu me machuquei, uma vez a mão e a outra as costas. Precisei de algumas semanas para sarar, toda vez reclamando em voz alta para não deixar a dor passar. Ele disse que ficou muito triste por ter feito isso comigo.

Muito estranho estar com alguém desse jeito. Aos poucos, quando acho que estou tomando liberdade, eu me envolvo com mais profundidade. Passo a ficar presente em momentos diferentes. Ele não parece estar gostando e responde com grosseria. Eu não consigo pensar em outra coisa para chamar isso além de grosseria.

Muito ruim que seja essa a resposta. Se essa foi a única resposta que ele teve e é assim que sabe falar comigo, tudo bem. Se não é pessoal, é apenas parte da personalidade dele, eu entendo. Mas isso não me atrai. Não fiz nada para isso, não mereço, não gosto. E sabe o que eu faço quando eu não gosto?