sábado, setembro 19, 2020

Pirâmide

Hoje trabalhei até tarde, me frustrei com tudo e dormi de roupão. Dormi um sono sem ter sono, só pra não ficar acordada sem o que fazer; não aguentava mais estar perdida.

Acordei fora do espaço e do tempo, sem nenhuma cor nem cheiro, às nove e quarenta da noite. Saí de um sonho estranho para me preparar para outro. Comi voando um macarrão na manteiga com pouco queijo, tomei um banho bem quente e lavei o corpo com força.

O que colocar? Eu já sabia, mas quis provar outras coisas só pra me atrasar. Não entro nessa saia, essa blusa me faz suar, esse sapato me aperta, esse vestido não dá certo sem meia calça. E eu não queria pôr meia; fui de coturno alto, calça justa e uma jaqueta que não era minha. Dei um jeito de não levar bolsa, não queria carregar absolutamente nada.

O cabelo estava solto, finalmente um dia em que ele ficou perfeito porque quis. Não enrolei tentando alguma maquiagem; deixei estar, porque à noite todos os gatos são pardos, só precisam de um pouco de hidratante e batom vermelho. Penteei a sobrancelha e passei perfume, fiquei sem tempo de me depilar ou de fazer a unha. E sair assim é libertador – pulei o compromisso de estar perfeita, adequada, pronta. Estou bem crua.

E como sempre, eu cheguei atrasada, furei a fila, fiz amigos do lado de fora. E virei uma tequila enquanto tomava um chopp, depois mais um e mais uma. É noite de dançar de cabeça baixa, deixar rolar. Tenho uma vontade que só aparece nesses momentos, de me enfiar entre um monte de gente pra viver. E nessas eu sou craque em achar que tenho o controle de tudo, de todos, da situação... Só não de mim. Na mistura de barulho, bebida, gente, cheiro, vontade de ir no banheiro pra fazer xixi e pra transar, eu quero me perder de novo.

Vou fazer o que der na telha. Muito, muito dificilmente serei pega desprevenida; eu te vi desde que você chegou, do título até aqui, e você achou que eu não perceberia a sua leitura... Eu sorri e te pedi um cigarro como quem não quer nada, para ter algum assunto pra conversar. Quem sabe ali no cantinho? Que legal tudo isso que você falou. Eu também tenho um monte de histórias boas pra contar. Tenho inclusive a dica de uma padaria aqui perto.

Dançar, só mais um pouquinho, porque eu adoro essa música. E agora vamos, que a fila para pagar diminuiu. Eu fiz amizade com o segurança quando cheguei e ele me abre um caixa vazio – eu te puxo para vir comigo. Mas as comandas são separadas, lógico. Depois eu penso aonde estou indo e que horas são, isso não importa, eu já fiz esse caminho tantas vezes.

Mão no bolso com medo de ser roubada, vamos subir a rua. E encontrando as nossas coincidências, os nossos desencontros, tudo num quarteirão, no balcão da padaria, no táxi indo embora, quando descobrimos que moramos no mesmo prédio.

Por essa eu não esperava. Você mora lá mesmo? Por que não falou antes? Quem poderia imaginar que eu ia encontrar meu vizinho nessa noite...

E que nós moramos no mesmo apartamento há anos, mas não nos conhecíamos de verdade.