terça-feira, dezembro 31, 2019

Mãos ao alto

Estou guardando uma lesão no polegar direito. É uma dor de segurar qualquer coisa, um lápis, mouse, escova de cabelo. Se a mão está em repouso, aberta, tudo bem. Qualquer movimento e eu agarro a dor no ar, sem falta.

Eu sei que tem sim algo trincado nos ossinhos, algo que não vai se arrumar sem a devida imobilização. Já decidi que quando eu precisar de descanso, quando não der conta nem de pedir as contas, vou fugir para o pronto-socorro no horário de pico com o laptop debaixo do braço. O tempo de espera para ser atendida e examinada servirá para me trazer paz.

De repente, quando achei que a vida tinha se tornado realmente intolerável, e a necessidade de aguardar o atendimento seria impossível de ignorar, a dor pulou de uma mão para a outra. Da destra necessária, imprescindível, fugiu para a canhota inútil, boba. E agora?

Engessar a outra mão não funciona como desculpa para abdicar do dia a dia profissional, e deve me prejudicar apenas 50% em âmbito privado: lavar o cabelo, usar talheres, dirigir, perderei a independência sem perder a utilidade. E os meus chefes com isso? Contanto que a minha mão apta esteja disponível, pode vir só ela mesma, serrada na altura do pulso, para discar o telefone, copiar um documento, arrumar as gavetas. Todo o resto em dor, quebrado, destruído, não importa; basta que a ferramenta de trabalho tenha vontade de corresponder ao script combinado.

Desapaixonada

Fiz uma piada sobre ele para a minha mãe e ele me empurrou no estacionamento do supermercado. Pediu desculpas quando eu reclamei.

Apontei um erro no trabalho que ele estava fazendo com um tom zombeteiro, tomei um dedo na cara. Sem nenhuma necessidade de ser enquadrada, tive que levantar a voz para dizer que aquilo não era certo. Ele aquietou.

Trouxe o remédio que ele não queria e ele jogou o cobertor longe. Tomou sem me olhar e virou para dormir. Falou um obrigado bem seco.

Por duas vezes eu me machuquei, uma vez a mão e a outra as costas. Precisei de algumas semanas para sarar, toda vez reclamando em voz alta para não deixar a dor passar. Ele disse que ficou muito triste por ter feito isso comigo.

Muito estranho estar com alguém desse jeito. Aos poucos, quando acho que estou tomando liberdade, eu me envolvo com mais profundidade. Passo a ficar presente em momentos diferentes. Ele não parece estar gostando e responde com grosseria. Eu não consigo pensar em outra coisa para chamar isso além de grosseria.

Muito ruim que seja essa a resposta. Se essa foi a única resposta que ele teve e é assim que sabe falar comigo, tudo bem. Se não é pessoal, é apenas parte da personalidade dele, eu entendo. Mas isso não me atrai. Não fiz nada para isso, não mereço, não gosto. E sabe o que eu faço quando eu não gosto?

sexta-feira, novembro 29, 2019

Subnutrida

Come assim, assado ou cru. Na verdade não come cru, não gosta. Come bem. Quase de tudo, tem seus gostos e seus favoritos, mas também tem aquilo de que não gosta. Come rápido, come acompanhada, come porque mandam, come logo cedo, come para trabalhar e come antes de dormir. Observa os outros comendo, toma muito cuidado ao comer. Não come frutas, não come sozinha em público, come por prazer e come para experimentar. Não sabe fazer nada pra comer, os outros têm que cozinhar. Há preferências e recusas, um prato predileto feito com amor e a falta de costume em relação a outras culinárias.

Mais importante do que o alimento, como é ingerido, com quem e quando, é o seu propósito para ela. Enfim, manter o corpo de pé. E para que?

Para dançar. Para atingir o grau máximo de perfeição, a nota completa, o giro correto, o pé exato e os braços certos. Sem alimento o corpo não tem forças, não fica de pé. E se não está de pé, não dança.

Falar com ela sobre comida não tem graça. Ela não vê graça na comida em si, mas no que ela proporciona. Ela consome com a esperança de que o metabolismo faça as massas, carnes e saladas tornarem-se fonte de energia. Come para o treino, antes e depois, para dar tempo de digerir e para obter resultados. Come sem pressão externa, não segue dietas, mas come concentrada. Come com um objetivo, além da saciedade e do prazer. Come porque o corpo demanda, e o corpo pede pela dança.

Come não só em gramas. Come o tempo entre um ensaio e outro, come as horas de preparação. Come o próprio suor e o das colegas, come a meia, o collant e as sapatilhas que usa no dia a dia. Come o público da apresentação, come a maquiagem e o gel no cabelo, come o figurino, as luzes e a trilha sonora. Come até a dor nos joelhos, que é palatável, come a professora. Saboreia o tempero do rigor, da exigência e dos elementos técnicos.

Tudo isso adquiriu um gosto conhecido. Em todos esses anos de dedicação, a dança criou o fogo a preparar todas as outras ações. Comer era um investimento em uma decisão maior, a de dançar por muitos e muitos atos, sem hora para acabar.

Mas parou. E não parou porque estava satisfeita, parou porque lhe tiraram o prato. Estando sem aquela receita estabelecida, diante de tantos sacrifícios que fez para juntar todos os ingredientes, não enxergou meios de continuar. E engordou, e emagreceu de novo, e algo mudou no seu corpo. Não é uma carência no exame de sangue, não são as dobras ou as magrezas da pele. Não é só isso. O que acontece é que a dança não a devora mais, mas o apetite permanece.

domingo, setembro 29, 2019

Oi

Se meus professores soubessem que eu escrevo aqui, ah, eles me matavam.

Não pela qualidade, pelos temas ou pelo estilo. Mas pela ideia de jerico de manter um Blogspot em pleno 2019.

Tem jeito mais antigo de divulgar os meus escritos? Tantas ferramentas, aplicativos que eu poderia utilizar, tantas formas de propagar as minhas ideias, e eu insisto num blogzinho muito amador, mal-acabado, sem design nenhum. Não levo nada para as minhas parcas redes sociais; não aproveito o que a tecnologia me oferece. Só posto aqui uma vez por mês, de acordo com a meta preguiçosa que eu estabeleci, e deixo os meus textos públicos, tomando ar. Quem quiser vir, que venha. Quem souber de antemão que esse é o meu lugar, por acasos do destino, e quiser ler, que o faça.

Ao jogar meu nome na internet, esse endereço até que é fácil de achar. Mas por que diabos alguém jogaria meu nome na internet, pesquisaria sobre mim aleatoriamente? Enquanto eu não linkar esse meu trabalho com os perfis que já tenho e cultivá-los pouco a pouco com meus textos, não há motivos para que esse blog ganhe mais do que um comentário perdido por ano.

Pode não ser essa a melhor hora para isso. Não é o momento certo para eu investir e esperar algum retorno, eu deveria me atualizar e me lançar apenas quando estivesse mais preparada. Mas é isso o que eu posso fazer por enquanto; é assim que eu gosto de escrever, e continuar com isso já me é mais do que prazeroso. Não devo ter medo de tentar expandir um pouco o público que aparece na minha sala de estar para me dar um oi.

Em outridade

Tem aquele, o outro. Aquele outro que está em todos os sonhos, os arrepios e os olhares errados. Putz, é bom, mas tem algo de desconfortável.

Não importa o fato de que, quando ele abre a boca perto de mim, ele se torna muito menos interessante e cheio de buracos. Ele de verdade, apesar dos meus esforços, seria insuficiente para qualquer coisa que não me emprenhar de imaginações impuras com o seu cheiro, as suas mãos e o seu sorriso. E essa não é uma questão de sexo propriamente dito, mas de poder que eu exerço sobre mim mesma (nenhum), sobre os outros (testando limites) e sobre essa narrativa louca que eu criei. Dou corda para essa coisa aparentemente impossível e vou quebrando meus próprios acordos, como eu já fiz outra, e outra vez – e tive motivos para entrar em guerra comigo mesma para não atirar em ninguém. Preferi sair brigada com o meu reflexo do que perder meus pilares, arrependida do sim que era não – e que pouco deixei respirar.

Isso é sujo? É errado? Então por que me dá tanto prazer e eu insisto em pensar? Por que essas ideias batem na minha porta e eu insisto em atender, contra tudo que eu imaginava? Ou assumo que é um desvio de programação, no qual eu vou insistir porque sim – porque me instiga –, ou me censuro com menos ódio. Vou tentar fingir que não fui eu que cheguei às últimas consequências, ao último centímetro do abismo, e até dei risada do que vi.

Cauterização sem fogo

Há alguns meses tive uma afta.

(Não sei se essa história pode começar sem alguns parênteses).

(Eu tenho um problema crônico com aftas, herdado do meu pai. Tenho muitas, frequentemente em grupos, por toda a boca, principalmente quando estou com a imunidade baixa).

(Rapidamente, o que é uma afta? De acordo com o site do dr. Drauzio Varella, “aftas são pequenas úlceras rasas que aparecem na cavidade oral, geralmente na mucosa bucal, nas gengivas e embaixo da língua”).

(Prossigamos).

Há alguns meses tive uma afta. Como todas as outras que a acompanharam, era muito feia, de bordas brancas e absolutamente sensível. Usei da minha experiência com pomadas específicas para tratá-la, às vezes esquecendo e sem querer enfiando a escova de dentes bem no centro da dor.

Um novo ciclo de aftas apareceu e essa afta em específico continuou feia. Estacionou na gengiva, em cima do primeiro pré-molar superior direito. Não se curava por nada e continuou comigo por bem mais de um mês – sem melhorar, aparentemente só piorando.

Fiquei desconfiada, mas não quis denunciar a minha apreensão. Falar disso para alguém tornaria público o meu medo, e conscientizaria a afta do incômodo que me causava. Se a afta soubesse o quanto me machucava a sua presença, antes irritante, agora preocupante, ela ganharia sua batalha contra o meu corpo, inútil na tarefa de se recuperar.

Guardei de boca fechada esse segredo que sangrava e latejava. Mal comia, nem falava, não beijava. Ficamos juntas por mais algum tempo, cultivando uma intimidade doída, já que não podia cortá-la fora – era um machucado para dentro, e atentar contra o tecido frágil só aumentaria seu poder sobre a situação. De um dia para o outro ela decidiu ir embora, assim sem mais nem menos. Mas não teve tempo de sarar totalmente.

Em seu lugar ficou uma horrível cicatriz, muito pior do que a que eu ganhei quando tirei o aparelho fixo. Um buraco descomunal em largura e profundidade, mais parecido com uma cratera quando eu o sinto com a ponta da língua.

Sorri de todas as formas em frente ao espelho para saber o quanto esse buraco me estragou. Eu tenho para mim que é um furo até à raiz do meu dente, chegando ao osso do maxilar. Mas não há nada visível a olho nu, apenas uma marca discreta que se mistura à ondulação normal da gengiva. Eu poderia continuar a minha vida despreocupada, sem ninguém jamais saber do defeito que eu escondo atrás do meu lábio superior, à direita.

Infelizmente não sei como conviver com esse buraco, muito pior do que a afta ativamente maligna. Enquanto o machucado vivo pulsava e todos os dias ameaçava infeccionar, a cicatriz não faz nada, não cheira nem reclama, mas me feriu muito mais. Mudou a textura e a sensibilidade da minha boca onde ela estava mais resguardada, e pensar nisso me dilacera.

A cicatriz se fechou com pressa e manteve algo de ruim dentro, sem espaço para crescer. Esse deixou de ser um ponto sensível, uma fonte que jorrava sangue para encobrir a dor. Ficou a conclusão malfeita, a reforma corrida e uma marca irresolúvel. Onde antes havia carne, tenho só a sua falta.

quinta-feira, agosto 29, 2019

A última página

Bom, é assim que eu me despeço de vocês. Não porque eu vou sumir da face da Terra, mas porque vou deixar de escrever, aqui e em qualquer lugar. Nem mais uma vírgula, nem mais um parêntese, nem um espaço entre as minhas ideias. Nunca mais quero abrir o Word nem bater no teclado. Ter que pedir para o garçom uma caneta para anotar um pensamento idiota no guardanapo. Ficar em silêncio para digitar uma bobagem no celular. Usar discretamente o bloco de notas durante o trabalho, separando o profissional do estritamente pessoal. Pedir uma folha de caderno para um colega que eu nunca mais vou ver. Escrever mesmo na palma, nas costas e nos dedos da mão, passando do pulso ao cotovelo, rezando para que o suor não apague tudo.

De agora em diante não quero mais ser alguém que tropeça numa inspiração, cai feio, se machuca e fica cheia de dores por uma semana, só pensando no sopro que esbarrou em mim.

Vou largar o compromisso de estar sempre atenta a cada um que passar ao meu redor. Nada mais vai me despertar a curiosidade de saber como essa pessoa é atrás da porta, depois do expediente, com outras máscaras, embaixo dos lençóis. É o fim da ânsia de parar o tempo e me teletransportar para a cadeira do computador do jeito que estou, sem mudar nada.

Espero não ter mais aqueles pensamentos que me acordam quando estou quase pegando no sono, tão instigantes que preciso gravá-los de algum jeito, em algum lugar. Prometo para mim mesma que vou lembrar até amanhã; e esqueço.

Quando eu parar de escrever, as pequenas coisas que me incomodam vão sumir. Junto com elas, acredito que todos os meus problemas vão desaparecer também. Sem o ímpeto de achar histórias nos menores lugares, o pêndulo entre viver e escrever vai tombar obrigatoriamente para um lado só. Vou poder me dedicar a uma vida sem reflexões doentias sobre tudo que acontece, sem palavras, sem linhas, sem som. Sem vida.

quinta-feira, julho 25, 2019

Lista de itens a serem observados para determinar se uma banana está madura ou não, por ordem de amadurecimento

Os últimos sinais são os mais sutis e importantes para se chegar a uma conclusão final sobre o amadurecimento desta fruta

O cheiro de banana verde é característico. Limpe seu olfato para experimentar. Aprenda na tentativa e erro, cheirando sempre a banana antes de comer, principalmente na feira ou no supermercado, para sentir o real cheiro de banana verde. A banana madura tem cheiro de banana, enquanto a verde tem um cheiro característico de despreparo, incompletude.

A força a ser feita para separar a banana do cacho também deve ser considerada. Este é um dos indicadores menos precisos dentre os apresentados nessa lista, mas, aliado aos demais, pode contribuir para a análise sobre o amadurecimento da banana.

Uma banana razoavelmente madura pode necessitar de alguma insistência para se soltar, mas ainda estar apetitosa. Caso ela se desligue com facilidade, sendo necessários apenas alguns movimentos de torção, está pronta para o consumo; se a casca nem apresenta quebras ao ser puxada, pode precisar de mais alguns dias.

Estando amarela, porém levemente esverdeada no cabo, a banana está quase no ponto. Se você não se incomoda com um suave gosto de verde, não haverá problema.

Muitas manchas pretas, moles ao toque, por outro lado, são um indicativo de que a banana já passou do tempo. Ainda é comestível, mas não faz o meu tipo.

Por fim, a capacidade de manter uma ereção ao colocar o preservativo.

Além de indicar uma possível falta de intimidade com o parceiro e com o próprio corpo, a perda de sustentação, quando recorrente, demonstra que a banana analisada não sabe lidar com os seus próprios medos e inseguranças. Há uma dificuldade em expor suas fragilidades, assumir responsabilidades e riscos, e uma complexa falta de preocupação com as possíveis consequências para consigo e com os demais.

Enfim, banana é uma delícia. Previne contra câimbras, inclusive.

sábado, julho 20, 2019

Pontos de vista

- Quero apostar com você que naquele apartamento, a única luz acesa naquele prédio, vai rolar uma sacanagem, e das brabas, daqui a pouco. Essa roda de cartas na varanda, por mais desanimada que pareça, não me engana. Daqui a pouco, com ou sem álcool, na luz de LED ou na penumbra do luar, alguém vai empurrar uma cadeira, um chinelo vai voar, vão correr para estender uma toalha a cobrir o guarda-corpo, ou nem isso. Eles vão se apoiar em qualquer lugar, na pia da churrasqueira mesmo, um de cada vez ou todos ao mesmo tempo, em casais ou outros formatos, aos berros ou tranquilos. Eu tenho certeza que esse pôquer, ou o que quer que seja, logo evolui para a baixaria completa quando alguém sugerir, discretamente, que se abandonem os naipes marcados, e se consumam os reis e rainhas. Isso vai virar uma mistura de baralhos e jogatinas, lançados em rodada única onde ninguém fica sem embaralhar e distribuir o que se tem nas mãos.

***

- Quero apostar com vocês que naquele gramado, onde aquele casal jovem estendeu uma toalha, vai rolar uma sacanagem, e das brabas, daqui a pouco. Eles estão tão calminhos agora, jogando conversa fora e tomando cerveja, mas eu sei que os hormônios nessa idade são impossíveis. Logo menos o papo descamba para os absurdos e o tesão impera, numa ânsia de contar vantagem, e eles não vão aguentar sem se mostrarem como os mais experientes em um raio de mil quilômetros. Vão rolar para fora da toalha, passar por cima de todas as latinhas, se exporem a esse orvalho desgraçado, sem nenhum pudor, só para se provarem e provarem, para quem quiser ver, que tem coragem sim. Só vão sobrar as meias nos pés, todo o resto vai pela grama, contornos borrados pela distância, longe da iluminação do único poste, quando as nuvens encobrirem a lua cheia. Depois das arfadas e dos gemidos, os sons que tentam segurar, vão ficar em silêncio, sem precisar de palavras para mais nada, nem o que não sabem.

segunda-feira, abril 29, 2019

Linha C, coluna 3

Vanessa estava na época de não saber o que queria, se desejava uma ilha deserta ou as fricções múltiplas de uma balada. Tanta coisa passava por sua cabeça e seu marido insistiu em marcar um cinema com muita antecedência, mantendo-a presa àqueles planos sobre os quais não tinha sido consultada.

Já muito antes da sessão, Fábio estava em histeria. Como seriam aquelas três horas de filme, se ele não tinha conseguido lugar nas poltronas de casal do cinema ultra super mega VIP? Para ela tanto fazia se não se sentaria do lado dele, a distância durante a sessão era uma alívio diante do compromisso matrimonial. Fábio insistia em criar estratégias para mover todos os espectadores da sala, garantindo que ele e sua esposa se sentassem juntos, grudados, inseparáveis. Vanessa não dava a mínima e se irritava com a insistência dele.

Ao chegarem à poltrona indicada em seu ingresso, Vanessa fez questão de confirmar: esse lugar é o meu, certo? Fábio confirmou em seco. A poltrona dela fazia par com um gostosão que pelo amor de Deus. Tão bonito que ela ficou envergonhada de olhar, já que ficaria à sua esquerda, sem nenhum obstáculo físico, apenas moral, por três horas. Ela pediu licença para sentar (na poltrona ao lado, não no colo dele) e tentou disfarçar sua satisfação com o que o destino lhe proporcionava.

Seu marido foi para seu lugar na fileira de trás, a dividir a namoradeira com um barbudo mal encarado, mas não largou o osso. Aos cinco minutos de trailer, veio anunciar todo cheio de si ao vizinho gostosão de Vanessa que ESSA MOÇA AQUI É A MINHA ESPOSA e ele GOSTARIA MUITO DE SENTAR DO LADO DELA NO FILME. Será que o gostosão poderia se mudar para sentar com o barbudo mal encarado? Ela quis dizer que não havia necessidade de nada disso, mas o próprio gostosão soube se defender com classe.

Segundo o gostosão, o moço na poltrona à sua direita, de quem ele estava separado por uma mesinha e um abajur, era o seu namorado. Infelizmente, ele não pretendia sair do lado dele para satisfazer outro casal.

Fábio tentou disfarçar a surpresa e saiu com o rabinho entre as pernas. Depois de ouvir a justificativa do gostosão, Vanessa quis confirmar o que tinha acabado de escutar. Sim, eles eram namorados. Ela enfim sugeriu, com delicadeza, que poderia trocar de lugar com o moço à direita para que ele e o gostosão pudessem assistir ao filme juntos. Sem forçar a barra ou esperar nada de ninguém.

O gostosão ficou ultra super mega agradecido com a proposta de dividir a namoradeira com quem realmente lhe interessava. Vanessa pegou sua bolsa e se aconchegou em sua nova poltrona, sozinha no canto da fileira. Ainda bem que a inconveniência de seu marido abriu espaço para a conveniência dos outros.

quarta-feira, abril 03, 2019

O devasso

Senti uma mão em minha coxa. O bafo quente e úmido na nuca. O gesto atrevido em pleno trem lotado decidiu me fazer de alvo passageiro, num desejo incontrolável. Por um segundo, ter entre os dedos aquilo de que o coração precisa.

Decidi corresponder àquele movimento vulgar. Deslizei minha mão para dentro do bolso ocupado, na ânsia de encostar na pele quente que me apertava. Precisava sentir aquela luxúria, aquela vontade iminente e furtiva entre o amontoado de pessoas dentro do vagão.

Nos tocamos e ele retesou a mão. Recolheu-se no mesmo instante da descoberta, já não mais um ato despercebido. Quis aparentar naturalidade, mas a rapidez com que virou o rosto denunciou sua intenção de fazer-me o mal. Falei bem próximo, ainda equilibrado:

- Você enfiou a mão na minha calça para me roubar.

Ele disse que não tinha feito nada daquilo.

- Eu senti sua mão no meu bolso tentando pegar meu celular.

Ele quis desconversar e desmentir a acusação.

- Eu e você sabemos o que você fez. Você quis pegar meu celular achando que eu não ia perceber. Eu percebi.

Ele insistiu em se fazer de inocente. O trem parou na estação e quem tentava acompanhar o episódio teve que se espremer para descer ou dar espaço ao público que embarcava. Puxei o ar para a ameaça final:

- Se você não descer desse trem agora, eu te arrebento na porrada.

Ele insistiu que estava quieto na dele e ali ficaria.

- Eu não estou a fim de brigar, é melhor você sair. Se você continuar aqui eu vou te dar um pau.

Segurei a porta com o pé e dei mais uma chance.

- O pessoal aqui também vai te bater quando souber o que você fez. Desce agora.

Ele escolheu sair no último segundo. Soltei a porta e todo o resto do vagão soltou a respiração. Estávamos distantes enfim. Eu não sofreria mais sua apalpação indevida; ele perdeu o butim e escapou das consequências. Não sofreria ali minha punição dura para sua safadeza com o corpo alheio.

quinta-feira, fevereiro 28, 2019

MS - 1

Ela ainda saía com vários caras por mês, uma ou duas vezes com cada um, e recebia aqui e ali alguns mimos; relações amadoras, nada financeiramente significativo, que não chegavam nem perto de bancá-la ou diverti-la. Anos de faculdade, cursava Jornalismo aos trancos e barrancos, sem a mínima disposição de um dia se formar e ter que procurar por empregos de verdade. Sobrevivia bem com a mesada do pai enviada do interior do Estado.

Até que conheceu o Marcelo. Foi apresentada como namorada de seu filho, Thiago, um de seus clientes mais novinhos. Ele sacou na hora qual era o envolvimento ali, e ela percebeu sua atenção. Louro, alto, bastante forte, ela não conseguia desviar do pai durante o jantar de aniversário do filho. Que ombros eram aqueles? Ele também demonstrou seu interesse nela, de um jeito muito discreto. Era absolutamente maravilhoso.

Entre um prato e outro, ela comentou sobre as fazendas de sua família, e mencionou questões trabalhistas que frequentemente requeriam um advogado. Marcelo, muito solícito, serviu mais vinho em sua taça e passou seu cartão pedindo que entrassem em contato quando fosse necessário. Seu escritório, segundo ele, possuía grande experiência na área. Ela sorriu e agradeceu.

Uma semana depois o namoro de fachada acabou, o pagamento final caiu em sua conta bancária e ela foi em busca de um vestido novo para impressionar Marcelo; pensava em sair com ele nos próximos dias. Passeando pelo shopping, olhava a vitrine de uma loja chique, onde as vendedoras eram suas amigas, quando reconheceu Alice, a esposa de Marcelo. Preferiu ser discreta e escolher uma estampa de outra grife.

quarta-feira, janeiro 30, 2019

A lagartixa

Eu estava tomando banho de porta aberta, a última coisa a fazer antes de dormir. Ao passar o shampoo no cabelo, levantei os olhos e vi alguém andando em cima da porta.

Um rostinho escuro, correndo frio. Uma lagartixa.

Ela percebeu que eu a notei. Parou na beirada da porta e encarou as toalhas penduradas na parede oposta. Calculava um pulo de fuga e engoliu seco ao ver que não teria sucesso. De vez em quando espiava a minha paralisia, só pensando: o que faço agora? Eu pensava a mesma coisa.

Terminei meu banho aos poucos. Para disfarçar, ela mudou de tática e decidiu me encarar fixamente. Não quis perder a pose de quem está no alto, mas já tinha consciência da minha intenção de despejá-la. Devagar, saí do box do chuveiro atenta a cada movimento, uma faca que ela pode puxar de dentro do casaco, uma arma na bolsa. Fui para o quarto sem tirar os olhos dela, que se mexeu para deixar um bracinho e uma perninha à vista, quase na dobradiça da porta. Vi as pontinhas pretas dos dedos, manicure escura.

Liguei duas vezes para a minha mãe e não fui atendida. Tentei encarar dignamente o fardo que se apresentava: busquei na lavanderia um rodo e uma vassoura, onde eu esperava equilibrar a lagartixa para transportá-la até a varanda.

Eu entrei no banheiro, de vassoura em punho, e aconteceu o inacreditável.

A lagartixa olhou para mim.

Um olhar de deboche, de desprezo a disfarçar. Eu baixei a guarda na mesma hora.

Depois de alguns minutos tentando recuperar a moral abalada, decidi pegar também uma pá para acomodá-la melhor – caso eu ao menos conseguisse encostar a vassoura nela. Concentrando-me na estrita necessidade de ter paz para dormir, ergui os objetos, e meu coração deu um pulo no peito.

O barulho do celular cortou todo o meu ímpeto. Finalmente minha mãe se dignou a retornar as chamadas não atendidas. Eu contei a história falando baixo, para a lagartixa não ouvir como eu me sentia indefesa. Recebi o pífio conselho de fechar a porta do banheiro e me contentar com uma toalha protegendo o batente inferior.

Indignada, comecei a bater boca pela sugestão pouco útil, o clima esquentou, a lagartixa tentou virar o corpo para escutar melhor que planos eu arquitetava. Ela passou a cabeça por cima da porta, esticou o pescoço fininho, me olhou satisfeita com o clima de desespero que tomava conta do quarto. Só não contava com a madeira escorregadia pelo vapor do banho, e plaf no chão. Eu gritei ao telefone e causei em minha mãe um ataque de risos.

Agora sim decidi chamar minha avó, que tinha ido dormir há pouco tempo. Ela trouxe a tática do saco: colocar o animal num saco plástico, sabe-se lá como, e jogar o saco na varanda. Quando entramos no banheiro para capturá-la, nada da lagartixa. Sumiu.

Eu já estava enfurecida com a audácia. Encontrei-a embaixo da pia, covarde, na quina do azulejo, traída pelos olhos escuros bem abertos. Na base dos cutucões com o rodo e aos gritos, ela foi para dentro do box molhado. Dali não conseguia escalar paredes, só correr meio tonta para lá e para cá.

Minha avó assumiu e em poucos segundos fez a lagartixa entrar no saco. Ergueu o plástico contra a luz e pude ver o corpinho preso.

Depois disso, não posso deixar de mencionar que ainda insisti em discutir sobre o despejo da lagartixa. Eu fazia questão de levar o saco para fora e quis tomá-lo da minha avó a todo custo. Ela não demorou a me entregar a prisioneira ensacada, doida para fugir, e, antes de ir para o quarto, disparou: agora come essa lagartixa!

terça-feira, janeiro 01, 2019

As oito metas de 2018

Há mais ou menos doze meses eu marquei na primeira página da minha agenda oito metas simples, pensadas para o ano que viria. Nunca tinha feito isso, e em pouco tempo criei objetivos próximos do possível para mim – não queria malabarismos, queria coisas para o meu bem. 2017 havia sido o primeiro ano em que eu assumi o compromisso de tratar a minha depressão seriamente, com terapia, remédios e exercícios, e a partir dessa decisão várias coisas boas puderam surgir. Houve momentos em que eu quebrei a cabeça para pensar um rumo mais interessante para o meu futuro - o que eu era incapaz de fazer até então - e era a hora de colocar isso no papel para o ano seguinte. Ao final desse período, revisito essas metas, elencadas como na minha agenda, em nenhuma ordem especial:

1) Concluir o curso de Relações Internacionais (3 matérias + TCC): minha história com essa graduação se arrastava desde o início de 2013 e eu estava cada vez mais infeliz com o curso. Nada parecia dar certo e cada resultado negativo que eu acumulava era mais um estímulo para eu desistir de vez. Até o meio de 2017, quando eu botei na minha cabeça que me formar em RI era indispensável para a minha próxima meta, eu não tinha nenhuma ideia de quando ou como poderia me graduar. Faltava tão pouco, eu estava quase na praia, mas não tinha vontade de nadar. Em 2018 me esforcei loucamente, passei nas três únicas matérias que faltavam (entre elas Cálculo e Estatística, que me apavoravam desde o primeiro ano) e entreguei meu trabalho de conclusão de curso (no forno desde 2015). A colação de grau, algo que eu nem sonhava, será em março.

2) Voltar a estudar Jornalismo: seguir somente com RI era algo que me deixava muito insatisfeita porque eu não sentia naquilo uma paixão. É um campo que eu aprendi a amar e respeitar, mas não me bastava. Sentia a falta de um complemento para o que eu aprendia, um modo de colocar em prática tudo que eu estudava. Decidi correr atrás do ano de Jornalismo que eu já tinha feito lá longe, em 2013, e trancado por não aguentar fazer duas graduações ao mesmo tempo. Com mais planejamento e determinação, prestei o vestibular para reaver a minha vaga e me matriculei no segundo ano da graduação. Terminei os dois semestres sem grandes loucuras nem arrancar os cabelos, muito mais tranquila com a escolha que fiz.

3) Melhorar a minha alimentação: eu precisava não de uma reeducação alimentar, mas de uma educação desde o nível mais básico – eu não comia quase nada. Sem a ajuda de uma nutricionista, muito dificilmente teria alcançado alguma melhora sozinha. Aprendi novos sabores, texturas e pratos, e isso extrapolou o que eu esperava. Infelizmente, com a lesão que tive em abril, da qual falo mais na próxima meta, perdi o tesão em me alimentar de maneira melhor e mais regrada por um tempo. O lado bom é que essa semente já foi plantada em mim, e sem dúvidas quero voltar a ter esse empenho.

4) Fazer exercícios físicos regularmente: até abril estava tudo uma maravilha. Eu corria que era uma beleza, tinha pique, ânimo e bons resultados. Quando me machuquei, entrei em parafuso e fiquei em pânico com a possibilidade de ter ferrado de vez meu tornozelo – de novo, de novo e de novo. Cada mínima pontada de dor me deixava mais para baixo e eu escolhi o sedentarismo por medo e comodidade. Demorei para marcar a fisioterapia, e muito mais para readquirir confiança em mim – e no meu pé, meio fraquinho, mas ainda o meu pé.

5) Continuar com os remédios e a terapia: não são baratos ou fáceis. Não é só engolir toda noite um comprimido que aparece magicamente na minha gaveta ou chegar em tempo para uma sessão de uma hora toda semana. Quando percebi que comecei a melhorar substancialmente com essas duas coisas, levantei uma resistência na minha cabeça. Um medo da dependência, não queria admitir que isso funcionasse. Consegui grandes progressos e, por mais que às vezes bata uma dúvida ou outra, não pretendo parar.

6) Voltar a estudar alguma língua estrangeira: essa foi uma promessa bastante otimista. Não sabia que eu realmente não teria como me dedicar a nada além das faculdades e do TCC esse ano. Tudo bem, não desisti, apenas adiei essa meta.

7) Arranjar um bom estágio no segundo semestre: novamente, eu achava que teria mais tempo e que não teria problema em acumular várias tarefas. Até fui chamada para uma vaga muito legal no fim do primeiro semestre, mas tive que recusar - depois vi que foi bom não ter aceitado.  Quando escrevi essa meta, não imaginava que no último mês do ano conseguiria a vaga de estágio dos meus sonhos para o ano seguinte. De forma inesperada, consegui cumprir com o que eu tinha planejado.

8) Ler 30 livros em 12 meses: há alguns anos eu já não lia como antes. Primeiro pensei em dois livros por mês, nada de outro mundo para os meus hábitos passados. Aumentei a contagem em seis para arredondar o número final. Infelizmente empaquei em vários livros chatos (comecei, desisti, abandonei) e tive muitas coisas para ler em ambas as faculdades. Terminei o ano com 17 livros lidos, e pela primeira vez anotei o nome de todos.

Outras coisas interessantes (para mim, pelo menos) que eu consegui em 2018: cortei meu cabelo bem curto e aprendi a fazer minhas próprias unhas. São coisas que parecem simples, mas que impactaram muito a minha imagem e autonomia nesse ano.

Para o próximo ano, já pensei nas minhas metas, e vou escrevê-las na minha agenda assim que postar esse texto. Mantive três das que fiz para o ano passado, pensei em três bastante desafiadoras (mexem com medos e incertezas) e coloquei também duas relativamente bem bobinhas, para ter a certeza de segui-las. Mal posso acreditar que esse ano vai começar, e não tenho ideia do que vou encontrar no caminho. Quero olhar de longe com um pensamento otimista, tão diferente do meu mau humor de sempre, para que eu não me deixe cair de novo, sem forças para levantar, no poço sem fundo que eu já conheci.