quarta-feira, janeiro 30, 2019

A lagartixa

Eu estava tomando banho de porta aberta, a última coisa a fazer antes de dormir. Ao passar o shampoo no cabelo, levantei os olhos e vi alguém andando em cima da porta.

Um rostinho escuro, correndo frio. Uma lagartixa.

Ela percebeu que eu a notei. Parou na beirada da porta e encarou as toalhas penduradas na parede oposta. Calculava um pulo de fuga e engoliu seco ao ver que não teria sucesso. De vez em quando espiava a minha paralisia, só pensando: o que faço agora? Eu pensava a mesma coisa.

Terminei meu banho aos poucos. Para disfarçar, ela mudou de tática e decidiu me encarar fixamente. Não quis perder a pose de quem está no alto, mas já tinha consciência da minha intenção de despejá-la. Devagar, saí do box do chuveiro atenta a cada movimento, uma faca que ela pode puxar de dentro do casaco, uma arma na bolsa. Fui para o quarto sem tirar os olhos dela, que se mexeu para deixar um bracinho e uma perninha à vista, quase na dobradiça da porta. Vi as pontinhas pretas dos dedos, manicure escura.

Liguei duas vezes para a minha mãe e não fui atendida. Tentei encarar dignamente o fardo que se apresentava: busquei na lavanderia um rodo e uma vassoura, onde eu esperava equilibrar a lagartixa para transportá-la até a varanda.

Eu entrei no banheiro, de vassoura em punho, e aconteceu o inacreditável.

A lagartixa olhou para mim.

Um olhar de deboche, de desprezo a disfarçar. Eu baixei a guarda na mesma hora.

Depois de alguns minutos tentando recuperar a moral abalada, decidi pegar também uma pá para acomodá-la melhor – caso eu ao menos conseguisse encostar a vassoura nela. Concentrando-me na estrita necessidade de ter paz para dormir, ergui os objetos, e meu coração deu um pulo no peito.

O barulho do celular cortou todo o meu ímpeto. Finalmente minha mãe se dignou a retornar as chamadas não atendidas. Eu contei a história falando baixo, para a lagartixa não ouvir como eu me sentia indefesa. Recebi o pífio conselho de fechar a porta do banheiro e me contentar com uma toalha protegendo o batente inferior.

Indignada, comecei a bater boca pela sugestão pouco útil, o clima esquentou, a lagartixa tentou virar o corpo para escutar melhor que planos eu arquitetava. Ela passou a cabeça por cima da porta, esticou o pescoço fininho, me olhou satisfeita com o clima de desespero que tomava conta do quarto. Só não contava com a madeira escorregadia pelo vapor do banho, e plaf no chão. Eu gritei ao telefone e causei em minha mãe um ataque de risos.

Agora sim decidi chamar minha avó, que tinha ido dormir há pouco tempo. Ela trouxe a tática do saco: colocar o animal num saco plástico, sabe-se lá como, e jogar o saco na varanda. Quando entramos no banheiro para capturá-la, nada da lagartixa. Sumiu.

Eu já estava enfurecida com a audácia. Encontrei-a embaixo da pia, covarde, na quina do azulejo, traída pelos olhos escuros bem abertos. Na base dos cutucões com o rodo e aos gritos, ela foi para dentro do box molhado. Dali não conseguia escalar paredes, só correr meio tonta para lá e para cá.

Minha avó assumiu e em poucos segundos fez a lagartixa entrar no saco. Ergueu o plástico contra a luz e pude ver o corpinho preso.

Depois disso, não posso deixar de mencionar que ainda insisti em discutir sobre o despejo da lagartixa. Eu fazia questão de levar o saco para fora e quis tomá-lo da minha avó a todo custo. Ela não demorou a me entregar a prisioneira ensacada, doida para fugir, e, antes de ir para o quarto, disparou: agora come essa lagartixa!

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Espaço abaixo: Pra quem leu o post e tem qualquer coisa a dizer. Deixe também o email ou site.