(Não sei se essa história pode começar sem alguns parênteses).
(Eu tenho um problema crônico com aftas, herdado do meu
pai. Tenho muitas, frequentemente em grupos, por toda a boca, principalmente
quando estou com a imunidade baixa).
(Rapidamente, o que é uma afta? De acordo com o site do
dr. Drauzio Varella, “aftas são pequenas úlceras rasas que aparecem na cavidade
oral, geralmente na mucosa bucal, nas gengivas e embaixo da língua”).
(Prossigamos).
Há alguns meses tive uma afta. Como todas as outras que a
acompanharam, era muito feia, de bordas brancas e absolutamente sensível. Usei
da minha experiência com pomadas específicas para tratá-la, às vezes esquecendo
e sem querer enfiando a escova de dentes bem no centro da dor.
Um novo ciclo de aftas apareceu e essa afta em específico
continuou feia. Estacionou na gengiva, em cima do primeiro pré-molar superior
direito. Não se curava por nada e continuou comigo por bem mais de um mês – sem
melhorar, aparentemente só piorando.
Fiquei desconfiada, mas não quis denunciar a minha
apreensão. Falar disso para alguém tornaria público o meu medo, e conscientizaria
a afta do incômodo que me causava. Se a afta soubesse o quanto me machucava a
sua presença, antes irritante, agora preocupante, ela ganharia sua batalha
contra o meu corpo, inútil na tarefa de se recuperar.
Guardei de boca fechada esse segredo que sangrava e
latejava. Mal comia, nem falava, não beijava. Ficamos juntas por mais algum
tempo, cultivando uma intimidade doída, já que não podia cortá-la fora – era um
machucado para dentro, e atentar contra o tecido frágil só aumentaria seu poder
sobre a situação. De um dia para o outro ela decidiu ir embora, assim sem mais
nem menos. Mas não teve tempo de sarar totalmente.
Em seu lugar ficou uma horrível cicatriz, muito pior do
que a que eu ganhei quando tirei o aparelho fixo. Um buraco descomunal em
largura e profundidade, mais parecido com uma cratera quando eu o sinto com a
ponta da língua.
Sorri de todas as formas em frente ao espelho para saber
o quanto esse buraco me estragou. Eu tenho para mim que é um furo até à raiz do
meu dente, chegando ao osso do maxilar. Mas não há nada visível a olho nu,
apenas uma marca discreta que se mistura à ondulação normal da gengiva. Eu
poderia continuar a minha vida despreocupada, sem ninguém jamais saber do
defeito que eu escondo atrás do meu lábio superior, à direita.
Infelizmente não sei como conviver com esse buraco, muito
pior do que a afta ativamente maligna. Enquanto o machucado vivo pulsava e
todos os dias ameaçava infeccionar, a cicatriz não faz nada, não cheira nem
reclama, mas me feriu muito mais. Mudou a textura e a sensibilidade da minha
boca onde ela estava mais resguardada, e pensar nisso me dilacera.
A cicatriz se fechou com pressa e manteve algo de ruim
dentro, sem espaço para crescer. Esse deixou de ser um ponto sensível, uma
fonte que jorrava sangue para encobrir a dor. Ficou a conclusão malfeita, a
reforma corrida e uma marca irresolúvel. Onde antes havia carne, tenho só a sua
falta.
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