domingo, setembro 29, 2019

Cauterização sem fogo

Há alguns meses tive uma afta.

(Não sei se essa história pode começar sem alguns parênteses).

(Eu tenho um problema crônico com aftas, herdado do meu pai. Tenho muitas, frequentemente em grupos, por toda a boca, principalmente quando estou com a imunidade baixa).

(Rapidamente, o que é uma afta? De acordo com o site do dr. Drauzio Varella, “aftas são pequenas úlceras rasas que aparecem na cavidade oral, geralmente na mucosa bucal, nas gengivas e embaixo da língua”).

(Prossigamos).

Há alguns meses tive uma afta. Como todas as outras que a acompanharam, era muito feia, de bordas brancas e absolutamente sensível. Usei da minha experiência com pomadas específicas para tratá-la, às vezes esquecendo e sem querer enfiando a escova de dentes bem no centro da dor.

Um novo ciclo de aftas apareceu e essa afta em específico continuou feia. Estacionou na gengiva, em cima do primeiro pré-molar superior direito. Não se curava por nada e continuou comigo por bem mais de um mês – sem melhorar, aparentemente só piorando.

Fiquei desconfiada, mas não quis denunciar a minha apreensão. Falar disso para alguém tornaria público o meu medo, e conscientizaria a afta do incômodo que me causava. Se a afta soubesse o quanto me machucava a sua presença, antes irritante, agora preocupante, ela ganharia sua batalha contra o meu corpo, inútil na tarefa de se recuperar.

Guardei de boca fechada esse segredo que sangrava e latejava. Mal comia, nem falava, não beijava. Ficamos juntas por mais algum tempo, cultivando uma intimidade doída, já que não podia cortá-la fora – era um machucado para dentro, e atentar contra o tecido frágil só aumentaria seu poder sobre a situação. De um dia para o outro ela decidiu ir embora, assim sem mais nem menos. Mas não teve tempo de sarar totalmente.

Em seu lugar ficou uma horrível cicatriz, muito pior do que a que eu ganhei quando tirei o aparelho fixo. Um buraco descomunal em largura e profundidade, mais parecido com uma cratera quando eu o sinto com a ponta da língua.

Sorri de todas as formas em frente ao espelho para saber o quanto esse buraco me estragou. Eu tenho para mim que é um furo até à raiz do meu dente, chegando ao osso do maxilar. Mas não há nada visível a olho nu, apenas uma marca discreta que se mistura à ondulação normal da gengiva. Eu poderia continuar a minha vida despreocupada, sem ninguém jamais saber do defeito que eu escondo atrás do meu lábio superior, à direita.

Infelizmente não sei como conviver com esse buraco, muito pior do que a afta ativamente maligna. Enquanto o machucado vivo pulsava e todos os dias ameaçava infeccionar, a cicatriz não faz nada, não cheira nem reclama, mas me feriu muito mais. Mudou a textura e a sensibilidade da minha boca onde ela estava mais resguardada, e pensar nisso me dilacera.

A cicatriz se fechou com pressa e manteve algo de ruim dentro, sem espaço para crescer. Esse deixou de ser um ponto sensível, uma fonte que jorrava sangue para encobrir a dor. Ficou a conclusão malfeita, a reforma corrida e uma marca irresolúvel. Onde antes havia carne, tenho só a sua falta.

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