sábado, setembro 12, 2009

Aceita?

Bebi devagar o meu chá; eu não gostava de chá, principalmente daquele, feito com folhas verdes e cogumelos vermelhos batidos com leite de porco, entretanto, seria uma indesculpável falta de bons modos deixá–lo esfriando na xícara azul. Um engraçadíssimo bule transparente a toda hora flutuava da mesinha de centro e despejava um pouquinho mais em minha xícara, mesmo quando eu lhe dizia educadamente que já estava satisfeitíssima. Apesar de não possuir uma face para expressar suas emoções, comportava–se como um perfeitíssimo ser humano.

A senhora sentada à minha frente tomava o chá a toda velocidade, sem parecer se importar com a quentura ou com o gosto amarguíssimo. Trajava uma saia e uma blusa de tecidos roxos e laranjas belíssimos. Apenas enquanto o bule a servia ela conversava falava comigo, sempre um pouco distraída:

–Há tanto tempo você não vem aqui... Certamente algumas semanas.

Expliquei–lhe que não era sempre, infelizmente, que eu podia visitá–la. Seus olhos encararam fundo em mim; o fazia para lembrar de minha avó.

–Lembro–me agora de uma vez em que sua avó estava aqui, para um chá, – bebeu o conteúdo fumegante num só gole – tranqüilíssimo como esse, justamente quando uma nave enorme estacionou bem ali! Corremos pra lá – ela apontou uma imensidão escura – e, imagine, encontramos três senhores esquisitíssimos, que se moviam lentamente, piores do que lesmas!...

Eu gostava de ouvir suas histórias, principalmente aquelas que incluíam meus parentes. Não me importava de ter que ir tão longe, naquele frio, para visitá–la. Tomei um golinho do chá e, disfarçando o gosto repugnante preso em minha língua, pedi que ela continuasse:

–Por vez ou outra passa algo voando aqui por perto, naquela direção, – ela apontou uma coisinha brilhante e vermelha – mas sempre costumam mais ir pra lá – tomou o chá e, catando o bule no ar, direcionou–o para um outro pontinho mais aceso e um pouco maior no lado oposto.

–Nada nunca bateu aqui? Algo que estava voando perto... e caiu?

O bule nunca se esvaziava. Felizmente, às vezes ficava quietinho, sem voar, ouvindo comigo as histórias. Eu ficava aliviada, porque assim podia acabar logo com o chá restante em minha xícara. Afaguei sua tampa delicadamente, agradecida pelo sossego.

–Ora, claro! Em algumas ocasiões, tenho até que me esconder por alguns dias, pois muitas coisas ficam caindo, coisas pesadas, cinzas e com inscrições azuis, vermelhas, pretas, amarelas e brancas.

– A senhora nunca quis ir embora?

Ela colocou com uma das mãos a xícara e o pires na mesinha (eles boiaram no ar por alguns segundo até ela lançar-lhes um olhar malvado), suspirou fundo:

–Jamais existiu um dia em minha vida em que eu não quisesse voltar. Você, sendo neta de sua avó, deveria, a partir de hoje, saber de um pequenino fato, acho eu: – aproximou–se:

–Tenho medo da solidão.

Fiquei boquiaberta. Ela continuou:

–Tenho pavor do silêncio, de não ter ninguém. De conviver apenas com a própria sombra e só poder ouvir a própria voz. De não poder compartilhar nada com ninguém, de não ter ninguém para me receber, muito menos convidados para entreter de vez em quando. De viver sem ninguém para me dizer bom dia ou boa noite, deixando assim a minha agonia mais lenta ainda... Sinto–me inabitada, pois não há quem possa morar no meu coração ou ocupar meus pensamentos. É, vocês seres humanos me fazem falta.

Ela sentia–se tristíssima, como eu nunca havia imaginado antes. Foi um pequeno choque, admito, encontrar tamanha senhora tão abalada. O bule suspirou, deixando escapar fumaça, sabendo da dor de sua dona. O ambiente ficou mais frio e as estrelas pareceram piscar loucamente (ainda que eu tenha dado pouca atenção a isso). Eu confortei–a segurando sua mão macia e redondíssima que ela deixara sobre vagando no ar. Sorriu para mim um sorriso grato (pude ver seus olhos molhadíssimos), e puxou a mão para enxugar uma lágrima.

–Nunca me acostumei e nunca conseguirei. Mas, é preciso. É necessário. É indispensável. É até mesmo óbvio. Eu mereço e nunca disse que não ficaria aqui. Não se preocupe: todos têm que pagar, às vezes por sua insolência e audácia, ocorrida em qualquer época da vida.

Meu relógio assoviou. Eu precisava voltar para casa.

Se não fosse tão ingênua à época, poderia ter notado sua expressão mudar em alguns milímetros.

–Desculpe, tenho que ir. – mordi o lábio, infeliz por ter de deixá–la sozinha novamente. Pobre velhinha...

–Vá, querida. Não se preocupe. Só deixe–me antes mostrar–lhe uma coisinha.

Ela fechou meus olhos assoprando-os. Senti-a segurar-me pelos ombros, levando–me para um outro lado. Andamos pelas terras esburacadas. Soprando-me novamente (senti alguma sonolência e uma leve sensação de poder voar), eu os abri.

E ali estava a Terra, quieta, azul, marrom, verde e branca. Grandíssima, era maior do que o que eu imaginava. Distingui a América, onde ainda era dia, da Europa e da África, onde já estava noite. Jamais havia imaginado vê-la assim; pensava como um pequeno ponto no espaço. Nunca entendi sua grandeza ou as fórmulas que explicavam o seu tamanho.

Eu queria abraçar aquela generosa senhora para expressar minha felicidade e me despedir, mas ao me virar, ela não estava mais lá. Não havia ninguém por perto.

Só as sombras se aproximavam, querendo me devorar.

Quando tomei fôlego, já não enxergava mais nada, apenas um pouquinho da Terra, longe demais. Eu experimentava como era ser parte do escuro, tomada pelo medo.

A cada segundo eu estava cada vez menos viva.

Era o meu fim. Eu estava do lado escuro da lua.

Solitária.
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Ainda que na escuridão, meu coração brilhava.

4 comentários:

  1. O pior não é sentir medo: é se ver no conto. Fico imaginando o que a senhora fez para ter tal destino, ou o que leva o personagem principal a ir até lá, ou ainda de onde raios do céus ela arranja leite de porco. Brincadeira :)

    De verdade, me surpreeendi com seu texto, Flávia. Gostei mesmo e espero ler mais. Alívio!

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  2. provou acido?! isso me lembra algo... number nine, number nine, number nine, number nine...

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  3. Muito boa Flá! Ta com os meus parabens(mesmo que nao valem muito).
    Tanto eu quando a minha irma gostariamos de ver cada vez mais de você! BJS!

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