sexta-feira, janeiro 30, 2009

Lembranças

Doutor olhava os papéis apressadamente. Corria os olhos e os empilhava em montes altos, que serviam como sua fortaleza, para que soubesse o que fazer depois. Sua secretária chegava a todo o momento, trazendo nos braços outras pilhas de papéis e pastas transbordando de notícias e estudos. Despejava-os em sua mesa, cuidadosamente, para que não escorregassem e sua ordem meticulosamente estabelecida não fosse alterada. A longa mesa de Doutor estava cheia, mas cada vez mais informação chegava.
-Lílian, vá tomar um café. – ele ajeitou os óculos fracos sobre o nariz e suspirou devagar para que nenhum papel voasse. Ela olhou esbugalhada para ele, surpresa, mas aceitou. Saiu da sala com passos fortes, apressados, estabanados. Tinha trinta, quarenta anos no máximo, mas vários fios brancos se misturavam ao cabelo ruivo preso num rabo de cavalo. Não era atraente, pelo menos não para ele, mas também não precisava ser. Era simpática, o que já era o suficiente. Ele a ouviu ligar a barulhenta cafeteira e abrir o armário para pegar um coador e uma caneca.
-Um para o senhor também?
-Não, querida.
Olhou desanimado para os incontáveis documentos. Sua inabalável paciência se desfazia naquela tarde sem graça. Apertando um botão do controle remoto que tirara de sua gaveta, fechou as janelas de seu escritório no primeiro andar automaticamente e ligou as luzes. Nenhum pedestre ou carro na rua o atrapalharia. Ficaria sozinho para este trabalho infinito.
Doutor examinava mortes peculiares ao redor do mundo, daquelas sem razão ou motivo, que apenas faziam o coração das pessoas parar de bater para sempre. Sem dúvida você pode não acreditar, mas este trabalho realmente existe. Na verdade, uma morte assim pode acontecer com qualquer um, eu ou você, subitamente, não importando a saúde, idade, raça, credo, time ou para qual hospital se é levado. Casos assim não aparecem em jornais e não são noticiados, apenas pessoas realmente próximas ficam sabendo que a morte foi deste infeliz modo. São raros, mas nunca se pode prever um.
Ele era um médico respeitadíssimo no ramo. Estudava muito, absorvia qualquer conhecimento possível, pesquisava sobre tudo, mantinha contato com outros poucos médicos dessa especialidade diariamente para trocar informações.
Doutor passava seis dias por semana, onze horas por dia, lendo depoimentos de médicos e testemunhas, estudando os hábitos dos defuntos, comentando, e por fim enviando o resultado aos parentes ou amigos do falecido para que o caso fosse solucionado. Falava seis línguas fluentemente, mas às vezes chamava um tradutor, pois chegavam a ele ocorrências de todo o mundo. Normalmente, uma carta era novamente enviada, com mais dúvidas dos conhecidos do morto. Ele respondia todas, sem exceção, e a correspondência costumava se prolongar por meses. Sentia-se como um psicólogo, explicando a morte várias vezes, ouvindo tristezas e consolando desconhecidos.
Aquele era mais um dia entre milhares. Mais um dia onde descobria algumas artimanhas da morte e ainda assim duvidava de sua força inexplicável sobre a vida. Nunca se arrependeu do dia em que escolheu sua profissão, mas hoje achava que seria melhor como pediatra; vendo a vida que acabou de começar todos os dias!
Tinha mandado Lílian deixá-lo em paz, pois queria analisar um caso que lhe tirava o sono há tempos. Era o de uma garota americana que tinha o coração parado, mas que ainda vivia!
Ela, que se chamava Charlotte, morava numa pequena cidade do interior dos Estados Unidos e era uma adolescente pacata. Numa noite estrelada, há alguns meses, estava em casa sozinha; os pais tinham saído para um jantar na casa de familiares. Pelo que tinha contado aos médicos que a atenderam, ficou o tempo todo lembrando de um amor. Apenas isso. Seu depoimento era tocante e simples. Contava sobre o tempo que passou junto com seu namorado, de cada conversa que tinha tido, de cada beijo que deram, de cada passeio que fizeram, de cada ciúme que sentiram, de cada carinho que ele lhe fez, de cada eu te amo que os dois disseram... A paixão entre os dois não tinha terminado, mas há muito tempo ela não o via pessoalmente. Ele morava longe.
Quando seus pais chegaram, notaram a estranha palidez da menina e seu cansaço. Ela desmaiou no sofá e quando seu pai verificou seu pulso, não sentiu nada. Levaram-na para o hospital, onde foi dada como morta. Sua mãe estava inconsolável no corredor, abraçando seu marido. Quando mencionou o nome do namorado de sua filha, aos prantos, Charlotte acordou, levantou da cama de hospital e caminhou até sua mãe.
Seu coração não bateu mais desde então.
Charlotte continuava com aspecto de morta: não dormia, não comia, mas ainda assim andava, conversava e, principalmente, ainda lembrava e muito de seu amor. Quando as lembranças eram fortes e verdadeiras demais, enfraquecia-se cada vez mais, a ponto de desmaiar de vez em quando; mas ela não morria.
Ao ler aquela história novamente, ele parou seu trabalho, olhou o infinito, lembrou-se de Rita... ‘E esta dor do lado esquerdo do peito, me tira o fôlego, não passa de jeito nenhum, será que é grave?’, pensou preocupado, passando a mão pelos cabelos que ficavam cada vez mais ralos e brancos. Rita, Rita...
Lílian entrou na sala com a caneca fumegante ainda nos lábios. Deixou-a cair e espatifar-se quando viu Doutor caído no chão, olhos virados e boca aberta. Tremendo, virou-o rapidamente de barriga para cima e verificou seu coração. Nada. Não adiantou chamar uma ambulância. Seu corpo foi cremado no mesmo dia, no fim da tarde.
Doutor também teve seu coração parado para sempre por lembranças... Mas ele já era velho, não agüentaria viver morto como Charlotte, e suas lembranças sobre Rita eram muito mais dolorosas... Rita, Rita...

3 comentários:

  1. Caramba....
    Muito bom... gostei do toque morbido do texto.

    Fusco

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  2. Meeeu, de novo aparece a característica de que o que voce escreve é involvente e legal de ler.
    Gostei do tom mórbido do texto. [2]
    Mas, seilá, além de mórbido talvez...
    Parabéns,
    Beijao

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  3. Fla,
    Adorei. Foi a primeira vez que entrei no seu blog. Voltarei sempre!! Bjs,Tia Mo.

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