Eu estava tomando banho de porta aberta, a última coisa a fazer antes de dormir. Ao passar o shampoo no cabelo, levantei os olhos e vi alguém andando em cima da porta.
Um rostinho escuro, correndo frio. Uma lagartixa.
Ela percebeu que eu a notei. Parou na beirada da porta e encarou as toalhas penduradas na parede oposta. Calculava um pulo de fuga e engoliu seco ao ver que não teria sucesso. De vez em quando espiava a minha paralisia, só pensando: o que faço agora? Eu pensava a mesma coisa.
Terminei meu banho aos poucos. Para disfarçar, ela mudou de tática e decidiu me encarar fixamente. Não quis perder a pose de quem está no alto, mas já tinha consciência da minha intenção de despejá-la. Devagar, saí do box do chuveiro atenta a cada movimento, uma faca que ela pode puxar de dentro do casaco, uma arma na bolsa. Fui para o quarto sem tirar os olhos dela, que se mexeu para deixar um bracinho e uma perninha à vista, quase na dobradiça da porta. Vi as pontinhas pretas dos dedos, manicure escura.
Liguei duas vezes para a minha mãe e não fui atendida. Tentei encarar dignamente o fardo que se apresentava: busquei na lavanderia um rodo e uma vassoura, onde eu esperava equilibrar a lagartixa para transportá-la até a varanda.
Eu entrei no banheiro, de vassoura em punho, e aconteceu o inacreditável.
A lagartixa olhou para mim.
Um olhar de deboche, de desprezo a disfarçar. Eu baixei a guarda na mesma hora.
Depois de alguns minutos tentando recuperar a moral abalada, decidi pegar também uma pá para acomodá-la melhor – caso eu ao menos conseguisse encostar a vassoura nela. Concentrando-me na estrita necessidade de ter paz para dormir, ergui os objetos, e meu coração deu um pulo no peito.
O barulho do celular cortou todo o meu ímpeto. Finalmente minha mãe se dignou a retornar as chamadas não atendidas. Eu contei a história falando baixo, para a lagartixa não ouvir como eu me sentia indefesa. Recebi o pífio conselho de fechar a porta do banheiro e me contentar com uma toalha protegendo o batente inferior.
Indignada, comecei a bater boca pela sugestão pouco útil, o clima esquentou, a lagartixa tentou virar o corpo para escutar melhor que planos eu arquitetava. Ela passou a cabeça por cima da porta, esticou o pescoço fininho, me olhou satisfeita com o clima de desespero que tomava conta do quarto. Só não contava com a madeira escorregadia pelo vapor do banho, e plaf no chão. Eu gritei ao telefone e causei em minha mãe um ataque de risos.
Agora sim decidi chamar minha avó, que tinha ido dormir há pouco tempo. Ela trouxe a tática do saco: colocar o animal num saco plástico, sabe-se lá como, e jogar o saco na varanda. Quando entramos no banheiro para capturá-la, nada da lagartixa. Sumiu.
Eu já estava enfurecida com a audácia. Encontrei-a embaixo da pia, covarde, na quina do azulejo, traída pelos olhos escuros bem abertos. Na base dos cutucões com o rodo e aos gritos, ela foi para dentro do box molhado. Dali não conseguia escalar paredes, só correr meio tonta para lá e para cá.
Minha avó assumiu e em poucos segundos fez a lagartixa entrar no saco. Ergueu o plástico contra a luz e pude ver o corpinho preso.
Depois disso, não posso deixar de mencionar que ainda insisti em discutir sobre o despejo da lagartixa. Eu fazia questão de levar o saco para fora e quis tomá-lo da minha avó a todo custo. Ela não demorou a me entregar a prisioneira ensacada, doida para fugir, e, antes de ir para o quarto, disparou: agora come essa lagartixa!
quarta-feira, janeiro 30, 2019
terça-feira, janeiro 01, 2019
As oito metas de 2018
Há mais ou menos doze meses eu marquei na primeira página da
minha agenda oito metas simples, pensadas para o ano que viria. Nunca tinha
feito isso, e em pouco tempo criei objetivos próximos do possível para mim –
não queria malabarismos, queria coisas para o meu bem. 2017 havia sido o
primeiro ano em que eu assumi o compromisso de tratar a minha depressão
seriamente, com terapia, remédios e exercícios, e a partir dessa decisão várias
coisas boas puderam surgir. Houve momentos em que eu quebrei a cabeça para
pensar um rumo mais interessante para o meu futuro - o que eu era incapaz de
fazer até então - e era a hora de colocar isso no papel para o ano seguinte. Ao
final desse período, revisito essas metas, elencadas como na minha agenda, em
nenhuma ordem especial:
1) Concluir o curso de Relações Internacionais (3 matérias +
TCC): minha história com essa graduação se arrastava desde o início de 2013 e
eu estava cada vez mais infeliz com o curso. Nada parecia dar certo e cada
resultado negativo que eu acumulava era mais um estímulo para eu desistir de
vez. Até o meio de 2017, quando eu botei na minha cabeça que me formar em RI
era indispensável para a minha próxima meta, eu não tinha nenhuma ideia de
quando ou como poderia me graduar. Faltava tão pouco, eu estava quase na praia,
mas não tinha vontade de nadar. Em 2018 me esforcei loucamente, passei nas três
únicas matérias que faltavam (entre elas Cálculo e Estatística, que me
apavoravam desde o primeiro ano) e entreguei meu trabalho de conclusão de curso
(no forno desde 2015). A colação de grau, algo que eu nem sonhava, será em
março.
2) Voltar a estudar Jornalismo: seguir somente com RI era algo
que me deixava muito insatisfeita porque eu não sentia naquilo uma paixão. É um
campo que eu aprendi a amar e respeitar, mas não me bastava. Sentia a falta de
um complemento para o que eu aprendia, um modo de colocar em prática tudo que
eu estudava. Decidi correr atrás do ano de Jornalismo que eu já tinha feito lá
longe, em 2013, e trancado por não aguentar fazer duas graduações ao mesmo
tempo. Com mais planejamento e determinação, prestei o vestibular para reaver a
minha vaga e me matriculei no segundo ano da graduação. Terminei os dois
semestres sem grandes loucuras nem arrancar os cabelos, muito mais tranquila
com a escolha que fiz.
3) Melhorar a minha alimentação: eu precisava não de uma
reeducação alimentar, mas de uma educação desde o nível mais básico – eu não comia
quase nada. Sem a ajuda de uma nutricionista, muito dificilmente teria
alcançado alguma melhora sozinha. Aprendi novos sabores, texturas e pratos, e
isso extrapolou o que eu esperava. Infelizmente, com a lesão que tive em abril,
da qual falo mais na próxima meta, perdi o tesão em me alimentar de maneira
melhor e mais regrada por um tempo. O lado bom é que essa semente já foi
plantada em mim, e sem dúvidas quero voltar a ter esse empenho.
4) Fazer exercícios físicos regularmente: até abril estava
tudo uma maravilha. Eu corria que era uma beleza, tinha pique, ânimo e bons
resultados. Quando me machuquei, entrei em parafuso e fiquei em pânico com a possibilidade
de ter ferrado de vez meu tornozelo – de novo, de novo e de novo. Cada mínima
pontada de dor me deixava mais para baixo e eu escolhi o sedentarismo por medo
e comodidade. Demorei para marcar a fisioterapia, e muito mais para readquirir
confiança em mim – e no meu pé, meio fraquinho, mas ainda o meu pé.
5) Continuar com os remédios e a terapia: não são baratos ou
fáceis. Não é só engolir toda noite um comprimido que aparece magicamente na
minha gaveta ou chegar em tempo para uma sessão de uma hora toda semana. Quando
percebi que comecei a melhorar substancialmente com essas duas coisas, levantei
uma resistência na minha cabeça. Um medo da dependência, não queria admitir que
isso funcionasse. Consegui grandes progressos e, por mais que às vezes bata uma
dúvida ou outra, não pretendo parar.
6) Voltar a estudar alguma língua estrangeira: essa foi uma
promessa bastante otimista. Não sabia que eu realmente não teria como me
dedicar a nada além das faculdades e do TCC esse ano. Tudo bem, não desisti,
apenas adiei essa meta.
7) Arranjar um bom estágio no segundo semestre: novamente, eu
achava que teria mais tempo e que não teria problema em acumular várias tarefas.
Até fui chamada para uma vaga muito legal no fim do primeiro semestre, mas tive
que recusar - depois vi que foi bom não ter aceitado. Quando escrevi essa meta, não imaginava que no
último mês do ano conseguiria a vaga de estágio dos meus sonhos para o ano
seguinte. De forma inesperada, consegui cumprir com o que eu tinha planejado.
8) Ler 30 livros em 12 meses: há alguns anos eu já não lia
como antes. Primeiro pensei em dois livros por mês, nada de outro mundo para os
meus hábitos passados. Aumentei a contagem em seis para arredondar o número
final. Infelizmente empaquei em vários livros chatos (comecei, desisti,
abandonei) e tive muitas coisas para ler em ambas as faculdades. Terminei o ano
com 17 livros lidos, e pela primeira vez anotei o nome de todos.
Outras coisas interessantes (para mim, pelo menos) que eu
consegui em 2018: cortei meu cabelo bem curto e aprendi a fazer minhas próprias
unhas. São coisas que parecem simples, mas que impactaram muito a minha imagem
e autonomia nesse ano.
Para o próximo ano, já pensei nas minhas metas, e vou
escrevê-las na minha agenda assim que postar esse texto. Mantive três das que
fiz para o ano passado, pensei em três bastante desafiadoras (mexem com medos e
incertezas) e coloquei também duas relativamente bem bobinhas, para ter a
certeza de segui-las. Mal posso acreditar que esse ano vai começar, e não tenho
ideia do que vou encontrar no caminho. Quero olhar de longe com um pensamento
otimista, tão diferente do meu mau humor de sempre, para que eu não me deixe cair
de novo, sem forças para levantar, no poço sem fundo que eu já conheci.
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